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História imortal
The Immortal Story
Orson Welles
França, 1968, 66 min, 35 mm para DCP

 
Em Macau, meados do século XIX, Sr. Clay, um rico e debilitado comerciante de chá que por anos conheceu o mundo apenas através de seus livros de contabilidade, decide concretizar uma antiga lorota que ouviu de um marinheiro, durante uma viagem de navio. Na história, um rico cavalheiro aborda um jovem marinheiro na rua, o convida para jantar em sua casa e oferece ao garoto cinco guinéus para se deitar com sua bela esposa e assim gerar um herdeiro. Ávido para por seu plano em prática, Sr. Clay não percebe as consequências de tornar real uma história.
 
História imortal faz parte de um antigo interesse de Orson Welles de adaptar para o cinema contos da escritora dinamarquesa Karen Blixen, de quem o cineasta sentia profunda admiração. Ele mesmo interpreta o papel de Sr. Clay junto a um elenco que conta com Jeanne Moreau, Fernando Rey, entre outros, em uma produção filmada na Espanha e comissionada por uma emissora francesa de televisão. Em 2016, História imortal foi restaurado em 4K a partir dos negativos originais de câmera. Existem duas versões do filme, uma em francês com duração de 50 minutos e a versão em inglês que será projetada no IMS.
 

 
"História imortal: Divas e dândis"
Por Jonathan Rosenbaum

 
O artigo a seguir foi originalmente publicado em inglês, em 2016, para acompanhar o lançamento do DVD/Blu-ray de História imortal pelo selo norte-americano The Criterion Collection. A tradução foi realizada com o consentimento do autor. A versão original e integral pode ser lida no link: The Criterion Collection - The Immortal Story: Divas and Dandies.
 

Fora William Shakespeare, nenhum outro escritor despertava mais a imaginação de Orson Welles que Isak Dinesen, pseudônimo de Karen Blixen, - uma baronesa dinamarquesa que escreveu sobretudo em inglês - principalmente quando se tratava dos filmes que queria realizar. Mesmo que ela tenha nascido trinta anos antes de Welles, eles existiam a parte de seu próprio tempo. Ambos eram aristocratas cosmopolitas do século XX com anseios nostálgicos pelo XIX, que amavam criticar o mesmo romanticismo, no qual se envolveram. Ambos eram contadores de histórias barrocos e magistrais, com paladar apurado pelo paradoxo, pela ironia e com uma habilidade de chamar descaradamente a atenção para si mesmos. Talvez até mais relevante para essa discussão, ambos também eram incansáveis polidores de suas próprias obras, cuja assertividade e aparente simplicidade ocultam uma grande quantidade de nuance e habilidade.
 
Certa vez, Welles fez até uma peregrinação para a Dinamarca para encontrar Dinesen, mas após uma noite insone em Copenhagen, desistiu da ideia e voltou para casa: "Eu me apaixonei por Isak Dinesen quando abri seu primeiro livro", escreveu depois. "Tania foi alguém que eu não conheci. O que poderia ousar oferecer um visitante casual exceto sua gratidão gaguejante? O visitante seria um aborrecimento e o apaixonado era humilde e orgulhoso demais para isso. Eu tinha apenas que manter o silêncio e nosso caso seria duradouro - nos termos mais íntimos - porquanto tempo meus olhos fossem capazes de ler." ("Tania" era o apelido de Dinesen para os íntimos e quem sabe tenha vindo dela o nome dado à prostituta madura e calejada interpretada por Marlene Dietrich em A marca da maldade, de 1958.)
 
Ainda que "História imortal" de Dinesen - seu favorito de sua última coleção de contos, Anedotas do destino (1958) - seja o único de seus contos que rendeu um filme terminado de Welles, ao menos seis outros contos atraíram a atenção dele para adaptações cinematográficas, em algum momento. Já em 1953, ele planejava incluir uma adaptação de "O velho cavalheiro" (1934) em um filme antológico para o produtor Alexander Korda chamado Paris By Night [Paris à noite], cujos episódios seguintes seriam escritos pelo próprio Welles; e logo no final, em 1985, na mesma noite em que morreu, planejava filmar parte dessa mesma história. Originalmente, História imortal faria parte de uma antologia de histórias de Dinesen - para série de TV ou filme antológico - junto com "O dilúvio em Norderney" (1934), "Um conto do campo" (1957) e "A heroína" (1942), que o cineasta começou a filmar com Oja Kodar em Budapest enquanto editava História imortal (e o abandonou um dia depois quando o prometido financiamento evaporou). Finalmente, Os sonhadores, o mais valioso e pessoal de todos os seus projetos tardios, também estrelando Kodar, no qual Welles trabalhou entre 1978 e 1985, foi baseado no conto de 1934 de mesmo nome e em sua continuação tardia de 1957, "Ecos".
 
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Mesmo para um diretor de quem é esperado fazer o inesperado, História imortal foi para muitos uma partida desconcertante, quando estreou nos cinemas em 1968, por sua simplicidade e pelo fato de ter sido o primeiro filme colorido de Welles, financiado por uma emissora de televisão francesa. Ainda que tenha deslocado a história de Cantão para Macau e comprimido ou realocado alguns de seus detalhes narrativos, em geral, o cineasta adere ao original com rigorosa fidelidade, incluindo suas estranhezas e cantorias repetitivas de certas frases faladas, da mesma história impregnada sobre um marinheiro e de seu ritmo meditativo, quase cerimonial, que sugere em alguns momentos um transe hipnótico.
 
Um rico e gélido comerciante de 70 anos chamado Senhor Clay (Welles) maquina recriar uma lendária e fantasiosa história que ouviu, certa vez, de um marinheiro. Ele recruta seu contador, Elishama Levinsky (Roger Coggio), para colocar o plano em prática, e, este, contrata uma cortesã, Virginie (Jeanne Moreau), para um dos papeis. Ela revela ser filha de um comerciante que Clay levou ao suicídio anos antes e de quem a casa ele hoje ocupa; o marinheiro da história - um adolescente dinamarquês chamado Paul (Norman Eshley) - é escolhido aleatoriamente na rua por Levinsky e Clay. O restante do conto corresponde à maneira como o esquema de Clay se sai bem ou malsucedido.
 
Tanto a história do filme, quanto a história dentro da história são recontadas com o tipo de pureza elementar que associamos a mitos e contos de fadas. Como os quatro personagens são solipsistas solitários, e, espelhos frequentemente fazem parte dos locais, ao longo de todo o filme, repetições, ecos e outros efeitos de rima envolvem palavras e imagens. A história é essencialmente sobre as atrações e os perigos da própria contação de história e sobre os jogos de poder entre as pessoas nela envolvidas.Isso ajuda a explicar a ressonância pessoal tanto para Welles, quanto para Dinesen. O fato de a autora ter literalmente ditado a história, como várias outras, à sua secretária (tradutora para dinamarquês e eventual executora literária), Clara Svendsen, deve ter enfatizado seu próprio sentido de interatividade na contação.Algo que refletiu na narração de Welles no início da versão do filme em inglês.
 
Dada a escassez aparente do filme, é surpreendente ler o livro Orson Welles at Work (2006), de Jean-Pierre Berthomé e François Thomas, e descobrir que foi filmado na França e na Espanha, em ao menos três aldeias medievais que representaram Macau. Depois de quatro dias insatisfatórios com o técnico da velha guarda Walter Wottitz, Welles escolheu como cinegrafista o quase novato, Willy Kurant, que havia filmado longas com Agnès Varda e Jean-Luc Godard, utilizando equipamentos mais leves e uma câmera na mão que trouxe um certo sabor de Nouvelle Vague para o classicismo geral do filme. Embora as filmagens tenham durado apenas seis semanas, o processo de montagem levou quase um ano para ser concluído e resultou em uma versão em inglês para o lançamento comercial e uma, mais curta, em francês, para a televisão. Como Berthomé e Thomas observam, "Ainda que haja apenas 12 minutos de diferença entre as duas versões, elas são muito distintas, sendo impossível escolher".
 
Coincidentemente, foi graças à televisão francesa - a um programa sobre Erik Satie que Welles assistiu mais ou menos no meio do processo de montagem - que o cineasta decidiu usar várias das peças melancólicas e introspectivas para piano do compositor para a trilha sonora do filme. Foi uma escolha inspirada que, como o crítico Alex Ross da revista New Yorker observou, "logo se tornou um clichê", mas "era uma novidade em 1968".
 
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Segundo Judith Thurman, a biógrafa de Dinesen, este conto possuía um significado particularmente pessoal para a autora, sendo escrito após a dissolução traumática de seu intenso (porém casto) relacionamento com o poeta dinamarquês Thorkild Bjørnvig, para quem ela serviu por sete anos como musa, conselheira literária e alma gêmea. Thurman observa, "Foi um dos três contos de Dinesen, focado na figura de um intrometido cósmico, que inocente ou iludido frente sua onipotência, tenta usurpar o papel dos deuses na vida de uma outra pessoa para introduzir seus próprios planos para o desenvolvimento e resultado de tal vida e vislumbrar seu próprio desejo em um destino-em-processo". O primeiro destes contos - que, para Thurman, "antecipou com curiosa coincidência em detalhes" a amizade entre Dinesen e Bjørnvig - foi "O poeta", escrito no início da década de 1930. E o terceiro foi "Ecos", acontinuação de "Os sonhadores", que para Thurman, "foi o epitáfio daquela amizade". "História imortal", parte central do trio, pode ser interpretado como sua reflexão complexa sobre a própria "intromissão cósmica" na vida e no destino de Bjørnvig.
 
Dada a apropriação de "História imortal" e "Ecos" por Welles (sem mencionar "Os sonhadores"), é difícil não encontrar seu investimento pessoal neste material altamente alegórico. "Os sonhadores" reconta a história de uma famosa cantora de ópera chamada Pellegrina que, depois de perder a voz, resolve sumir de sua própria vida e guiar a de outros; "Ecos" traça uma dessas vidas, quando ela tenta tutelar, em um vilarejo de um país remoto, um menino que possui uma bela voz que a faz lembrar de seu passado, porém ele acaba denunciando a tutora por bruxaria.
 
O fato de que Welles filmou muitos dos interiores de História imortal em seu próprio vilarejo perto de Madri, incluindo parte da casa de Clay, e, todo o material de Os sonhadores em sua própria casa e jardim em Hollywood, parece sustentar sua relação pessoal com estas histórias, mesmo que razões práticas tenham influenciado parte das decisões. O próprio relacionamento de Welles com Oja Kodar - que foi sua musa e também pupila - sem dúvida exerceu um papel, até mesmo em História imortal. Quando eu a conheci em 1986, alguns meses depois da morte de Welles, ela me disse que o primeiro trabalho que fez em um de seus filmes foi dublar os suspiros de Virginie em sua noite com Paul. E claramente, parte do que "Os sonhadores" significou para Welles foi a empatia com Pellegrina (e, por extensão, Kodar) e com o próprio melhor amigo e facilitador dela, um rico holandês chamado Marcus Cocoza (interpretado pelo próprio Welles), e, em "Ecos", possivelmente ele tenha se identificado, de formas diferentes, com ambos Pellegrina e seu jovem pupilo.
 
Então, não é um exagero dizer que em História imortal Welles tenha se identificado com todos os principais personagens - Clay, Elishama, Paul e Virginie (os dois últimos constituem uma clara alusão literária ao romance de Jacques-Henri Bernardin de Saint-Pierre, de 1788, Paul e Virginie, um dos livros lidos por Emma Bovary em Madame Bovary de Flaubert, setenta anos depois). Realmente, o fato de que Welles e Dinesen se identificam igualmente com todos os quatro personagens é central ao poder primordial de suas histórias.
 
Essa identificação cruzada é algo mais que esses dois grandiosos artistas compartilharam, uma fluidez em relação ao gênero, ao se tratar de se projetarem nos outros. Dinesen era frequentemente chamada de diva e Welles, às vezes, chamado de dândi, mas claramente, limita-los a esses estereótipos não faz jus, tanto aos seus temperamentos quanto às imagens que faziam de si mesmos. Seria muito mais preciso dizer que ambos eram divas e dândis, ao mesmo tempo e em todo momento.
 
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