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Cidade vazia: No Bowery e Uma história simples
 
"E se nós vencemos, por que parecemos perdedores? Por que as notícias continuam ruins? Não há vitória suficiente para celebrar."
Trecho da narração de Vitória estranha (Strange Victory, 1948), documentário norte-americano do cineasta Leo Hurwitz sobre o pós-guerra.
 
Na década de 1950, os Estados Unidos e a França celebravam o fim da Segunda Guerra Mundial e iniciavam um período de violentos conflitos em terras estrangeiras, com o desdobramento da Guerra Fria e a luta por independência dos territórios franceses na África e Ásia. Foi uma época de grandes deslocamentos populacionais e novas realidades sociais, junto a esforços artísticos de registrá-las. Lionel Rogosin e Marcel Hanoun foram dois cineastas que se dedicaram a retratar o impacto humano de uma nova ordem econômica mundial. Fizeram isso ao combinar um olhar classicamente humanista a uma busca por novas formas de realismo.
 
Nascido em Nova York em 1924, Lionel Rogosin era filho de um imigrante russo judeu que ascendeu e se tornou um milionário com a fabricação de raiom. Rogosin foi oficial da marinha americana na Segunda Guerra Mundial, experiência que impactou profundamente sua vida e o levou a construir uma carreira no cinema voltada para o registro das condições de violência e opressão estruturais promovidas ou negligenciadas pelo Estado e pela alta sociedade. Ele trabalhou por alguns anos na empresa da família, chegando inclusive à vice-presidência, porém, insatisfeito e inquieto com sua própria situação de conforto diante das atrocidades do mundo, decidiu largar a empresa e se dedicar ao cinema de documentário.
 
Rogosin sonhava em realizar um filme sobre o apartheid na África do Sul, que acabou se tornando seu segundo longa, a docuficção De volta à África (Come Back, Africa, 1959). Mas, para isso, sentiu necessidade de aprender a fazer cinema. Sua primeira experiência foi no Bowery, bairro pobre de Manhattan, onde conviveu com seus residentes (majoritariamente homens alcoólatras, entre eles, vários veteranos de guerra), registrando com uma câmera o cotidiano local. Rogosin deixou que cada um desenvolvesse seu próprio papel, com a ajuda do roteirista Mark Sufrin para organizar o material. O resultado foram cenas teatralizadas e semi-improvisadas, que remetiam aos filmes de Robert Flaherty e aos clássicos do neorrealismo italiano, como Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, Vittorio De Sica, 1948).
 
O diretor e seu cinegrafista Richard Bagley buscaram provocar uma empatia no espectador por meio de close-ups afetivos dos moradores do Bowery, inspirados nas pinturas de Rembrandt e sua capacidade de retratar a complexidade da expressão humana a partir de um jogo de luz e sombra. Eles escolheram como protagonista Ray Salyer, um veterano de guerra que trabalhou no sistema ferroviário antes de chegar desempregado no Bowery, e, como contraponto, Gorman Hendricks, um ex-jornalista e antigo residente do local. Acompanhamos a vida de um homem que procura se libertar de uma condição de miséria e a de outro, bem-adaptado ao meio, que encara a própria situação com serenidade. Quando sozinhos, esses personagens são retratados de perto, em planos americanos ou close-ups. Quando em grupos, os observamos imersos no ambiente ao redor, em busca de trabalho, ou de um trocado, no bar, no hotel, no sermão e no refeitório do abrigo. Nesses momentos, é possível perceber como esses atores acidentais trabalharam como interlocutores na criação de um retrato social fiel e justo.
 
No Bowery teve boa repercussão na Europa - inclusive foi um dos poucos documentários de longa-metragem da época que foi distribuído comercialmente - e chegou a ser um filme formativo para alguns cineastas norte-americanos, como John Cassavetes. Porém, no geral, foi muito criticado nos Estados Unidos e até enfrentou tentativas de censura do governo de um país que, naquele momento, não estava habituado a ver o violento reflexo de suas próprias mazelas. Rogosin, entretanto, se viu fortalecido pelo impacto que o filme teve no exterior e entrou em contato com o secretário da NAACP (Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor) e com o escritor sul-africano Alan Paton e, em 1957, se mudou com sua esposa grávida para a África do Sul.
 
Foi nesse mesmo período que Marcel Hanoun começou a fazer seu primeiro longa-metragem, Uma história simples, em coprodução com a emissora de televisão pública francesa. Hanoun nasceu em Túnis em 1929, em uma família de judeus argelinos, e teve uma experiência marcante quando jovem com seu pai, um cineasta amador que o filmava nas ruas. Ele então ficou fascinado com a capacidade da câmera não apenas de registrar, mas também de transformar a realidade. Se mudou para Paris logo após a Segunda Guerra Mundial, onde trabalhou como jornalista e fotógrafo e realizou cursos em artes dramáticas e audiovisuais antes de fazer cinema. Também encontrou inspiração na obra de Robert Bresson, cujo espelhamento de narração e ação em filmes como Diário de um pároco de aldeia (Journal d'uncuré de campagne, 1951) e Um condenado à morte escapou (Un condamné à mort s'est échappé ou Le vent souffle où il veut, 1956) trouxe para o cinema uma nova sensação de realidade interior.
 
Enquanto Bresson adaptou obras literárias, muitos dos filmes de Hanoun se basearam em acontecimentos da época, como notícias de jornal, suas experiências autobiográficas ou uma combinação dos dois. Foi assim com Uma história simples, uma ficcionalização de uma reportagem sobre uma mãe solteira e sua filha pequena em busca de uma vida estável na metrópole. No filme, acompanhamos em flashback a jornada da mulher (interpretada por Micheline Bezançon) com sua criança (Elizabeth Huart) pelas ruas de Paris, em busca de trabalho e de um lugar para dormir. Com o som integralmente pós-sincronizado, a protagonista narra de forma direta, concisa e quase banal cada ação a que assistimos na tela, sendo que ocasionalmente a voz que conta a história é atravessada pela pessoa que a vive. Algumas vezes, a narração antecipa a ação, outras, exprime o recém-ocorrido e, eventualmente, expressa a aflição da mulher, que se vê cada vez mais em um beco sem saída.
 
Entretanto, o filme (um dos poucos longas franceses filmado em 16 mm na época) não nos deixa em um estado de expectativa, pois sabemos que em algum momento as personagens serão resgatadas e que essa história que ouvimos já é passado. Isso se consolida tanto no texto de abertura - no qual o próprio cineasta declara ter conhecido a história em primeira mão - como na primeira interação do filme, quando uma senhora acolhe a mulher e sua filha - que naquele momento haviam chegado ao extremo de terem de dormir ao relento. Hanoun faz uma ponta no filme, interpretando um estrangeiro sem dinheiro para pagar a diária do quarto em um dos hotéis por onde a mulher passa. O curioso é que, ao homem, o atraso é perdoado, mas, à mulher com a filha, não.
 
Uma história simples é hoje a obra mais conhecida de Hanoun, mas é um filme muito particular em sua carreira, que continuou até sua morte, em 2012, e englobou mais de 70 trabalhos cinematográficos (longas e curtas, vídeo e película), junto a livros de crítica e teoria de cinema e à criação de duas revistas. Alguns anos depois de Uma história simples, filmou Outubro em Madri (Octobre à Madrid, 1965-1967), narrado e protagonizado por ele mesmo como um diário de filmagem, que comenta sua estadia na Espanha enquanto observamos uma colagem de cenas teatralizadas e documentadas. Outubro em Madri se assemelha à abordagem que o diretor adotaria por toda sua carreira, caracterizada por histórias não lineares, pluralidade de vozes e uma incansável autorreferência.
 
Hanoun sistematicamente produziu, filmou e editou suas obras e foi uma espécie de outsider mesmo em relação aos seus colegas da Nouvelle Vague, sempre buscando diferentes maneiras de aplicar sua fórmula: "Um filme não possui um tema, ele mesmo é o tema do filme" [1]. O diretor também acreditava que o cinema precisava ser um ofício ao alcance da classe trabalhadora, que deveria ter total liberdade de criação, sem ter de se submeter a uma lógica corporativista. Um pensamento independente e ativista pode ser similarmente atribuído a Rogosin, que escreveu em suas anotações de preparação para No Bowery: "Realidade - a vida é cinema" [2].
 
Rogosin fez poucos filmes (seis longas e alguns curtas) antes de sua morte, em 2000, mas atuou no meio cinematográfico de outras formas marcantes. Foi um dos fundadores do politizado movimento do Novo Cinema Americano, formado por cineastas independentes e experimentais, como Shirley Clarke, Robert Frank e Adolfas Mekas, que acreditavam na necessidade de desafiar o cinema comercial não apenas ao criar outras estruturas narrativas, mas também, em termos de produção, exibição e distribuição.
Mostrou vários dos filmes de seus colegas no Bleecker Street Cinema, uma sala de cinema alternativa em Nova York que ele abriu para passar De volta à África e que acabou se tornando um dos mais importantes cinemas de arte dos Estados Unidos. Também participou da distribuidora Film-Makers' Cooperative e fundou sua própria distribuidora, a Impact Films, que funcionou por 14 anos.
 
Rogosin e Hanoun são exemplos de artistas que nunca se deixaram levar pela possibilidade de uma carreira segura, seguindo um modelo de produção palatável aos bolsos de patrocinadores (públicos ou privados). Boa parte de suas obras continua circulando em cópias de alta qualidade devido aos esforços de preservacionistas, curadores, críticos, familiares, colaboradores e pequenas distribuidoras. É graças ao trabalho de pessoas que acreditam no princípio da arte e da educação acima do mercado que hoje podemos assistir às obras desses cineastas radicais e pioneiros, assim como muitas pessoas as assistiram no passado.
 
[1] Citado no texto dos curadores e críticos Nicole Brenez e Bernard Benoliel, "Marcel Hanoun, inventer la liberté", que acompanhou uma retrospectiva integral dos filmes de Hanoun realizado na Cinemateca francesa em 2010.
 
[2] Citado no documentário The Perfect Team: The Making of On the Bowery (2009), dirigido por Michael Rogosin, filho de Lionel, que cuida do acervo do pai por meio da entidade Rogosin Heritage.
 
A primeira Sessão Mutual Films de 2022 é dedicada à memória de Jonas Mekas (1922-2019) - imigrante, ativista, crítico e fundador da sala e do espaço de conservação nova-iorquino Anthology Film Archives, que mantém os negativos originais de No Bowery, além de uma cópia em 16 mm de Uma história simples, como parte de sua coleção Essential Cinema.
 

 
SINOPSE - NO BOWERY
 
SINOPSE - UMA HISTÓRIA SIMPLES
 

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MUTUAL FILMS