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No Bowery
On the Bowery
Lionel Rogosin | EUA | 1956, 65', 35 mm restaurado para DCP
 
Recém-chegado no Bowery, bairro pobre de Manhattan, Ray Salyer, um homem bem-apessoado do sul dos Estados Unidos, se dirige a um bar para tomar uma cerveja. Logo se junta a um grupo de beberrões, para quem paga uma garrafa de Moscatel. O ensurdecedor bar Majestic fervilha com seus frequentadores tresloucados. Gorman Hendricks, um velho morador da região, junta-se ao grupo e se torna uma espécie de interlocutor. Aos poucos, conhecemos a situação de Ray, ex-soldado e trabalhador do sistema ferroviário, que se desloca para o Bowery em busca de trabalhos temporários e de uma saída para a situação limítrofe em que se encontra. Em contraponto, também acompanhamos a jornada diária de Gorman, que sobrevive em resignação no submundo da marginalização social.
 
Primeiro filme de Lionel Rogosin, No Bowery foi um experimento de um jovem cineasta e ex-soldado inconformado com a destruição da Segunda Guerra Mundial e o subsequente tempo de "bonança" de um país que usou a vitória como ferramenta de propaganda e fortalecimento de um nacionalismo opressor. Rogosin, filho único de uma família de filantropos judeus em Nova York, realizou No Bowery sob a influência de Robert Flaherty e do neorrealismo italiano, ao trabalhar com atores não profissionais e filmar inteiramente em locação. Durante seis meses, ele e o cinegrafista Richard Bagley exploraram os becos, os bares, as igrejas e os dormitórios do Bowery, convivendo e observando os frequentadores locais antes de começarem as filmagens. Gorman morreu antes da estreia do filme (que acabou sendo dedicado a ele), enquanto Ray recusou uma carreira subsequente como ator para continuar a vida no bairro.
 
No Bowery estreou no Festival de Veneza, onde ganhou o prêmio de Melhor Documentário. O filme foi restaurado em 2006 pela Cinemateca de Bolonha dentro de um projeto maior de restauração das obras de Rogosin.
 

 
"No Bowery (1955-1956)"
 
O material a seguir foi traduzido do presskit de No Bowery, preparado pela distribuidora Milestone Films . A distribuidora também lançou as restaurações de mais quatro filmes de Lionel Rogosin, em parceria com a entidade Rogosin Heritage (http://lionelrogosin.org). Todo o material em itálicos vem das memórias não publicadas do cineasta.

 
A realização de No Bowery me ensinou um método de moldar a realidade numa forma que pudesse ativar a imaginação de outras pessoas. A realidade total de uma comunidade ou de uma sociedade é tão vasta que qualquer tentativa de detalhar sua totalidade resultaria em nada mais do que um catálogo sem sentido de representação fatual obsoleta - um resultado que chamo de "documentário". O grande trabalho de Robert Flaherty não tem nada a ver com "documentário", da mesma maneira em que uma grande poesia não tem nada a ver com a reportagem fatual de um sociólogo.
 
Desde o início, o cinema independente de Lionel Rogosin mostrou-se direto e humano, feito "de dentro", ao revelar pessoas em seus ambientes normais, deixando-as falar com suas próprias palavras. Ao escolher indivíduos comuns enfrentando problemas universais - falta de moradia, alcoolismo, discriminação racial, guerra e paz, conflitos de trabalho e pobreza - Rogosin expressou suas ideias de forma comovente. Ele escolheu o Bowery e seus residentes como primeiro tema, com a intenção de revelar a realidade daqueles que estavam sendo consumidos pela bebida ao tentarem fugir de suas próprias vidas.
 
No White House Tavern(um bar apreciado por escritores, artistas e cineastas no Hudson Street), Rogosin conheceu Mark Sufrin, um jovem escritor do Greenwich Village. Sufrin tinha acabado de voltar para os Estados Unidos após trabalhar em documentários em Israel e ficou empolgado com a possibilidade de trabalhar com o cineasta. Rogosin descreveu Sufrin como um "escritor freelance muito inteligente, agressivo e volátil, cheio de ideias engenhosas". A dupla, então, embarcou na realização de um filme em 16 mm sem roteiro. Quando eles decidiram que deveriam trocar para 35 mm, Sufrin convenceu Rogosin a contratar outro cliente habitual do Tavern, o cinegrafista Richard Bagley, que filmou The Quiet One (1948), de Sidney Meyers. The Quiet One retratou as experiências de um jovem afro-americano traumatizado no Harlem e foi uma revelação para cinéfilos e cineastas desde o dia em que estreou em 1949. Escrito por James Agee, com contribuições de Helen Levitt e Janice Loeb, sinalizou o nascimento de um novo cinema que logo incluiu figuras como Morris Engel (O Pequeno Fugitivo/Little Fugitive, de 1953) e Rogosin.
 
Quando comecei a pensar em um cinegrafista, Sufrin sugeriu Dick Bagley, que era considerado um gênio do Village. Rejeitei a ideia no início porque eu tinha visto e ouvido Dick no White Horse. Ele era tão rouco quanto um corvo ferido e eu não fiquei impressionado, mas decidi ver seu trabalho e após uma sessão resolvi que seu olho era superior à sua oratória. Depois, ele foi para meu apartamento onde lhe mostrei algumas imagens que eu mesmo havia filmado. Senti que o material o havia cativado, pois ele me perguntou o que eu queria fazer. As paredes do meu quarto estavam cobertas com retratos de Rembrandt, apontei e respondi "ISSO". Ele entendeu imediatamente. Suspeitei que sua afinidade com o tema estava conectada ao seu alcoolismo. Ele logo disse que o material era bom demais para um curta-metragem, "você tem que fazer um longa". Eu concordei, pois tinha pensado a mesma coisa havia semanas. Fiquei receoso por conta do alto custo e do risco, mas rapidamente concordei com ele e começamos. Comentei que o maior risco que se assume na vida é nascer, depois disso é ladeira abaixo.
 
Bagley era mais louco do que qualquer integrante do elenco do Bowery. Após os primeiros dias de filmagem, o protagonista Ray Salyer comentou, "Esse cara bebe mais do que eu". Fiquei chocado com seu consumo de álcool no primeiro dia e pensei, "Meu Deus, tenho um alcoólatra nas mãos". Prendi a respiração e aguardei os rushes. Eles estavam perfeitos, então, nunca mais o questionei. Durante as filmagens descobri que Bagley e eu tínhamos uma sintonia visual misteriosa. Nós raramente discutíamos a fotografia, eu simplesmente indicava a ação e a imagem sempre resultava como eu havia imaginado. Durante o dia Bagley bebia gim-tônica moderadamente, e quando nos reunimos à noite, enchia a lata até às 3h da manhã. No dia seguinte ele cumprimentaria o sol como um papo-ruivo meio-afogado, tão nauseado que eu pensava que ele podia morrer, mas após uma ou duas horas estava pronto para trabalhar novamente. Nós dois tínhamos uma paixão pelo filme, e acabou sendo um caso de amor artístico.

 
Na década de 1950, o documentarista pioneiro Robert Flaherty foi a maior influência para o cinema americano independente. Rogosin foi particularmente influenciado pelo filme de Flaherty Os Pescadores de Aran (Man of Aran, 1934). Então, sob o conselho de sua mentora Rosalind Kossoff (dona da distribuidora de arte A.F. Films e uma ex-associada de John Grierson no National Film Board, do Canadá), a primeira coisa que Rogosin fez foi seguir os métodos do celebrado documentarista, mergulhando por seis meses (junto a Sufrin e Bagley) no mundo dos bêbados do Bowery. Também inspirado por Flaherty, Rogosin se dedicou a "filmar aqueles que foram esquecidos, filmar de dentro e filmar com respeito, clareza e ternura".
 
Quando eles decidiram sair para filmar novamente, Bagley insistiu em ter um roteiro. A equipe então foi para o apartamento de Rogosin e passou cinco horas desenvolvendo um argumento baseado nas vidas dos três personagens principais.
 
"Queríamos extrair uma história simples do próprio Bowery", escreveu Sufrin na revista Sight & Sound em 1956. "Não uma história 'típica' ou 'simbólica', mas uma essência do lugar para expor (não dramatizar) a desesperança e o medo sem rumo de tais vidas - sem uma sentimentalidade arrogante ou morbidade generosa demais de nossa parte... Nossos atores foram tirados da rua e usavam seus próprios jargões... Entravamos nos bares em duplas, barbudos, vestidos com roupas do Bowery, fingindo embriaguez, forçados a beber copo após copo da cerveja suja e aguada que eles serviam. Ao sentarmo-nos no meio da multidão agitada de bêbados, nos tornávamos parte do cheiro, dos rostos de gárgula, do dormir e do vomitar, de toda a perturbação agonizante."
 
Rogosin, Bagley e Sufrin começaram a filmar com uma leve câmera Arriflex e um gravador.
 
Tinhamos nossa estrutura de cenas de rua, mas o esboço não contava com diálogos. Nossa intenção era improvisar, o que eu não sabia como fazer, mas descobri no set quando percebi que Gorman, Ray e Frank tinham muitas histórias e anedotas pessoais que eles podiam lembrar com facilidade. Comecei a perceber que se eu me limitasse aos incidentes de suas vidas, os diálogos seriam críveis e espontâneos. Eu havia desenvolvido um método de diálogo improvisado que usei nos meus futuros filmes.
 
Eles descobriram Ray Salyer, um trabalhador ferroviário itinerante de quarenta anos que apareceu bêbado no Bowery após um fim de semana. Ainda de aparência jovem, mas desgastado pela vida, ele era a combinação perfeita para o filme - um homem perpetuamente sem sorte, mas ainda não totalmente perdido. Como Sufrin escreveu: "De pé em uma esquina onde os homens mais jovens procuravam um dia de trabalho em caminhões que passavam, nós vimos o que pareceu uma escolha perfeita para um dos personagens principais - fisicamente, ele era tudo o que se poderia pedir. Quando nos aproximamos e conversamos com ele, ficamos maravilhados e encantados com a duplicação quase exata de sua história com a nossa. Se isso parece um pouco juvenil ou ingênuo, deixa-me explicar. Uma coisa é 'escrever' um papel e depois colocar um ator nele, mesmo que seja um ator não profissional. Outra inteiramente diferente é dar a um homem detalhes específicos de idade, aparência, ocupação, local de nascimento, uma combinação de circunstâncias, e depois andar até a esquina e dizer 'aquele se parece com ele', e descobrir que ele é precisamente tudo que você pensou, inclusive a quantidade de dinheiro que ele ganhou e perdeu com a bebida".
 
Para o outro personagem, eles escolheram Gorman Hendricks, um residente do Bowery de longa data que alegou ter trabalhado como repórter para o Washington Herald. Hendricks foi o guia de Rogosin durante suas perambulações iniciais pelo Bowery. Gorman era grisalho e com má saúde, mas ainda tinha um brilho nos olhos e uma inteligência por de trás deles.
 
Um dia percebi que o Gorman ficou muito inchado repentinamente. Eu o levei para o médico, que detectou que ele tinha cirrose hepática e me disse que qualquer consumo de álcool seria fatal. Senti que Gorman, como alcoólatra consolidado, não teria a determinação de parar. Alguns dias depois, nós jantamos juntos e Gorman disse para não me preocupar, pois ele não me desapontaria e ia parar de beber. Fiquei tocado e maravilhado com sua dedicação ao nosso projeto. Passei a acreditar que a motivação poderia ser uma poderosa arma para lutar contra o alcoolismo. A partir da informação que eu tinha, pensava que era quase impossível alguém parar de beber voluntariamente.
 
Hendricks então abandonou seu hábito diário de "40 a 50 copos de cerveja", e pelo restante do período de produção (em torno de sete semanas), seguiu as ordens do médico. Os cineastas prometeram continuar a pagar seu salário até que encontrassem emprego fixo para ele.
 
Gorman parou de beber até a conclusão das filmagens e depois, infelizmente, começou novamente. Ele não tinha mais razão para viver. Alguns dias após a conclusão do filme eu recebi uma chamada da polícia me informando que Gorman havia sido encontrado morto em um bar no Bowery com meu cartão em seu bolso. Fiquei abalado com a notícia. Tinhamos um forte vínculo de carinho e amizade.
 
Gorman Hendricks tinha 64 anos de idade. Rogosin dedicou o filme a ele e pagou por seu enterro (dia 27 de janeiro de 1956, Cemitério Rosehill em Linden, New Jersey, túmulo número 807, seção 70). Salyer, por outro lado, participou de entrevistas e supostamente lhe foi oferecido um contrato de 40.000 dólares após o lançamento do filme. Ele rejeitou explicando "Eu simplesmente quero viver em paz...Não há mais nada na vida além da bebida".
 
Embora a história do filme cobrisse um período de três dias na vida dos personagens, as filmagens ocorreram entre julho e outubro de 1955. Alguns momentos foram encenados, enquanto outros foram filmados em um estilo de Cinema Direto que registrou a ação nas ruas, nos bares e nos hotéis baratos do Bowery. Em vários momentos durante as filmagens, membros do "elenco" eram presos e voltavam com novas roupas e novos cortes de cabelo. Rogosin começou a dar cartas para seus atores pedindo para a polícia contatá-lo imediatamente se algum deles fosse preso. Isso não era o único problema que a polícia apresentou para o diretor. Seu velho carro maltratado - com quatro homens malvestidos, equipamentos de filmagens e rolos de filmes - era frequentemente parado pela polícia para averiguação. E muitas vezes, quando uma cena roteirizada estava sendo filmada, a polícia passava para dispersar a multidão. Entretanto, foi só depois que ela parou para procurar drogas ilegais e, alguns dias depois, mercadoria roubada que a equipe finalmente decidiu oficializar a produção. Após muita burocracia, eles obtiveram permissão para filmar.
 
Sufrin escreveu "A maioria do filme foi registrada no meio do verão mais quente da história de Nova York... Após algumas semanas de longas horas deitados como caçadores de patos sob o topo do aço abrasador do automóvel, nossas energias físicas começaram a se deteriorar e a tensão ficou evidente coma fatiga e a irritação quase constante. Reconhecemos o que estava acontecendo, mas devido à natureza do filme e à maneira em que foi preciso filmá-lo, as queixas foram deslocadas pela dedicação, entusiasmo e energia nervosa".
 
Ironicamente, quando a equipe começou a fazer No Bowery, a cidade de Nova York aprovou planos para demolir os trilhos elevados do metrô que perpetuamente lançaram a área empobrecida à escuridão. Às vezes, a equipe de demolição inadvertidamente derramava faíscas de tochas de acetileno em cima dos atores. Em outro momento, a ampliação planejada da rua começou e montes de terra interromperam a continuidade do filme. A equipe teve que esperar até que os novos encanamentos fossem instalados, a terra assentada e as ruas repavimentadas. Havia um medo real de que os trilhos seriam demolidos antes de terminarem o filme. Sufrin previu: "No final, isso significou a morte deste bairro pobre... neste último (e provavelmente único) registro de um lugar infame". Cinquenta anos depois, ainda existem restos do antigo Bowery, mas hoje, com hotéis boutiques assumindo o lugar de hotéis baratos, é de fato um cenário transformado.
 
Na manhã após o último dia de filmagem, Rogosin, Sufrin e Bagley se reuniram para um café da manhã tardio, felizes por terem terminado, mas com um estranho "sentimento de culpa". Sufrin escreveu que havia passado por "uma experiência profundamente comovente - e agora que escapei daquele lugar assustador. Eles ainda permanecem lá".
 

 
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