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Berenice
Bérénice
Raúl Ruiz
França, 1983, 105 min, 16 mm para DCP

 
O comandante militar romano Tito (interpretado por Jean-Bernard Guillard) e a rainha da Palestina Berenice (Anne Alvaro) compartilharam um amor proibido durante cinco anos antes dele se tornar imperador. Com a morte de seu pai, Tito resolve renunciar ao amor mal visto pelos romanos, em prol de sua popularidade. Berenice, inicialmente, não acredita na notícia, mas acaba aceitando a decisão com profunda desilusão, mesmo após o imperador, arrependido de sua escolha, tentar fazê-la mudar de ideia. Ela retorna para a Palestina e decide viver sem amar mais ninguém.
 
Assim segue a trama de Berenice, peça clássica francesa escrita por Jean Racine em 1670 e adaptada para o cinema por Raúl Ruiz, sob comissão do festival de teatro de Avignon. O filme foi rodado em preto e branco, 16 mm, em uma antiga mansão vazia com alguns dos atores presentes apenas como sombras ou vozes e Berenice, por vezes, lendo em um livro os atos a serem interpretados, criando uma atmosfera surrealista como se tudo não passasse de uma lembrança da rainha. Berenice foi restaurado em 2016 por François Ede (um de seus cinegrafistas) como parte de um projeto de restaurações dos filmes de Ruiz pela Cinemateca Francesa e pelo INA (Instituto Nacional do Audiovisual).
 

 
"Sobre Berenice"
 
Raúl Ruiz começou sua trajetória artística como dramaturgo e diretor de teatro e levou esse interesse para o cinema. Os filmes que ele fez diretamente associados ao teatro incluem  A vida é sonho (1987, baseado na peça de Pedro Calderón de la Barca, de 1635), Ricardo III (1986, baseado na peça de Shakespeare, de 1593) e Berenice, baseado na peça homônima de Jean Racine. Ruiz decidiu fazer um filme a partir da tragédia canônica de Racine após ser comissionado pelo Festival de Avignon - inicialmente para realizar uma produção teatral. O filme foi gravado ao longo de uma semana em uma mansão construída na década de 1930 pelo farmacêutico Alfred Daniel-Brulet, que hoje abriga um museu de arte chamado Musée des Avelines (Museu de Avelãs). Por muitos anos o filme foi considerado perdido, até o negativo original ser encontrado e restaurado por François Ede, um de seus cinegrafistas e colaborador frequente de Ruiz.
 
Ruiz falou sobre a realização de Berenice em entrevistas que foram originalmente publicadas em francês e em espanhol nas revistas Positif (n0 274, dezembro de 1983) e Enfoque (número 7, 1986) . Os seus comentários foram colecionados e publicados em espanhol por Bruno Cuneo em 2013 no livro Ruiz: Entrevistas escogidas - filmografia comentada . Eles aparecem aqui em português pela primeira vez.
 
Raúl Ruiz: No início era apenas uma espécie de aposta ou desafio. Ao longo das conversas surgiu a possibilidade de fazer teatro filmado na Inglaterra porque havia Shakespeare. Em Shakespeare existe muita ação e de algum modo é um autor ideal para o cinema. Mas na França nós não íamos fazer Racine... E então eu disse: por que não? No teatro de Racine existem poucos personagens e pode-se fazer praticamente tudo com os mesmos atores. Eu teria que fazer toda a obra de Racine. Tomei Berenice como ponto de partida, e então surgiu a verba do Festival de Avignon que me dava bastante dinheiro para pagar os custos de filmagem e laboratório.
 
Mas antes de fazer Berenice, eu não sabia muito bem porque queria fazer o filme. Eu realmente não sabia. Eu tive uma espécie de relacionamento completamente marginal. Um dia, pensei comigo mesmo: "Pourquoi ne pas checher les racines?" ("Por que não procurar as raízes?") É um jogo de palavras, no estilo de Lacan. Só poderia ser isso.
 
Esse é o verdadeiro motivo pelo qual Berenice é um filme fantasmagórico. Há uma personagem, que é uma espécie de fantasma, cercada por sombras. E, se formos fazer um filme fantasmagórico, o local da ação deve ser uma casa abandonada, cheia de sombras, com uma mulher que anda sozinha. Todas essas imagens, todos esses elementos aplicados a uma história cujo propósito era um jogo entre os deveres do Estado e as emoções, fazem com que o resultado seja um filme perfeitamente maquiavélico no sentido estrito. Deveres do Estado e emoções impregnados por estranheza.
 
Com Racine é possível fazer um filme fantástico. Também existe um elemento de "dispositivo", do ponto de vista puramente técnico: o que podia resultar em um filme feito inteiramente com sombras chinesas? Eu já tinha feito um experimento nessa linha com um curta-metragem chamado Sombras chinesas (1982). Mas quando fomos trabalhar o efeito, logo cansamos das sombras chinesas. Foi uma escolha demasiada óbvia. As sombras significam concretamente os fantasmas, as aparições. Este é o motivo pelo qual o filme joga sobretudo com o dispositivo que era tradicionalmente usado no cinema para dar a impressão de aparição, de algo sobrenatural, do além.
 
Em Berenice defini um estilo muito preciso de atuações. Mexer com Berenice na França é mexer com um objeto sagrado. Existem mil versões e há duas linhas principais de interpretação, sobre se o conflito principal é político ou sentimental. E mexer com a forma de falar o texto de Berenice é muito pior, porque os versos alexandrinos são falados de uma maneira e não de outra. Eu distingui três maneiras de dizer os versos. A própria Berenice fala de um modo impressionista, como se tivesse esquecido, como sonâmbula, deixando silêncios entre verso e verso. Com isso, os ritmos alexandrinos se tornam macios e o verso se esfacela. Também tratei de que a maioria dos personagens políticos falassem como políticos franceses atuais. Por último, o imperador Tito recita como os alexandrinos, de forma tradicional - quer dizer, com pausas intencionais entre os versos. Nunca no meio. Aqui tem um exemplo de marcação muito concreto.
 
Agora, se você for me perguntar as razões pelas quais eu queria tudo isso, é mais difícil de explicar. Eu queria que os políticos falassem como políticos franceses atuais porque o francês é um idioma muito estável desde o século XVII. Muitos de seus padrões seguem sendo utilizados hoje na televisão. Assim, poderia conseguir uma sensação de atualidade.
 
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