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Curtas de Ute Aurand
Ute Aurand | Alemanha | 1980-2021, 66' (com comentários da artista), 16 mm

 
A cineasta alemã Ute Aurand estará presente em São Paulo e no Rio de Janeiro para fazer uma sessão comentada de seis de seus mais de 40 filmes. A seleção visa apresentar um panorama do trabalho dela, desde seu primeiro filme - realizado no início da década de 1980, quando estudava cinema na universidade - até o mais recente, que estreou no ano passado. As projeções em 16 mm serão intercaladas por falas de Aurand sobre seu método de trabalho e sua relação com as pessoas registradas em seus filmes-retratos ao longo dos anos. As cineastas Maria Lang e Renate Sami, a escritora e professora Lisa Tamaru e os próprios pais da diretora são algumas das figuras que aparecem sorrindo diante de sua câmera com qualidades lúdicas e, por vezes, melancólicas. Também presente no programa, na forma de uma homenagem em um dos filmes, está a cineasta escocesa Margaret Tait, uma fonte de inspiração para Aurand e uma artista cujo trabalho ela divulgou de diversas formas.
 
Aurand começou a fazer cinema seguindo os exemplos impressionistas e poéticos de cineastas da vanguarda norte-americana, como Jonas Mekas e Marie Menken, e logo desenvolveu seu próprio estilo, que é ao mesmo tempo modesto e rigoroso em seu gentil olhar humano. Os filmes de Aurand que passarão no IMS contêm retratos, imagens de família, experiências banais, porém que refletem o valor absoluto da vida. Eles são registros majestosos de uma vida comum que expressam uma relação apaziguadora entre o ser humano e seu entorno, descrevendo momentos idílicos que ocupam um espaço de tempo de mais de quatro décadas. O método particular de edição dos filmes, no qual cortes rápidos são entremeados por uma breve luz ofuscante, cria um dinamismo incomum entre paisagens distintas e diferentes posicionamentos da visão subjetiva da artista no espaço. Aurand leva nossos olhos a dançarem com a imagem, nos envolvendo na impressão de que a própria vida é um breve sopro, um estouro fugaz e passageiro.
 
A sessão conta com os seguintes filmes, que passarão em exibição única em cada cidade em seu formato original de 16 mm. Quatro dos filmes são sonoros, e dois (De ponta-cabeça nos galhos e Meia-lua para Margaret), silenciosos. Aurand vai conversar com o público entre a projeção de cada filme.
 
Maria e o mundo
(Maria und die Welt)
Ute Aurand | Alemanha | 1995, 15', 16 mm
 
Renate
(Renate)
Ute Aurand | Alemanha | 2021, 6', 16 mm
 
Profundamente envolvida numa conversa silenciosa
(Schweigend ins Gespräch vertieft)
Ute Aurand | Alemanha | 1980, 8', 16 mm
 
De ponta-cabeça nos galhos
(Kopfüber im Geäst)
Ute Aurand | Alemanha | 2009, 15', 16 mm
 
Lisa
(Lisa)
Ute Aurand | Alemanha | 2017, 4', 16 mm
 
Meia-lua para Margaret
(Halbmond für Margaret)
Ute Aurand | Alemanha | 2004, 18', 16 mm
 

"Fragmento do trabalho de uma cineasta: Ute Aurand e Margaret Tait"
 
A entrevista a seguir com Ute Aurand foi conduzida pelo crítico e programador Federico Rossin em 2013, na ocasião de uma mostra no festival francês États généraux du film documentaire ("Estados gerais do filme documentário") que colocou em diálogo filmes de Aurand e de Margaret Tait. O programa completo da mostra pode ser encontrado no site Les États généraux du film documentaire  e a entrevista completa em ingles na página Fragment of a filmmaker's work: Ute Aurand and Margaret Tait
 
Federico Rossin: Você começou a fazer cinema quando era jovem e nunca parou. O que te motivou a ser uma artista?
 
Ute Aurand: Tornei-me estudante de cinema na Deutsche Film und Fernsehakademie Berlin (DFFB) em 1979 e fiz meu primeiro filme, Profundamente envolvida numa conversa silenciosa, sem conhecer nenhuma regra, apenas com uma espécie de coragem inconsciente e a necessidade de fazê-lo. Não estava pensando em cinema, nem em longas, nem em documentários. Eu nunca pensei em mim como uma artista, mas sempre como uma cineasta.
 
Rossin: Desde seu primeiro filme, você adotou uma forma de filme-diário. Por que escolheu essa maneira particular de fazer filmes, que mistura a vida e o cinema o tempo todo?
 
Aurand: Desde o início me senti próxima de filmes com uma forte subjetividade. Mas só depois da escola de cinema e a experiência de fazer OH! die vier Jahreszeiten (1988), junto com Ulrike Pfeiffer - inspirado no filme de Jonas Mekas, Do deserto ele conta os segundos de sua vida (He Stands in the Desert Counting the Seconds of His Life, 1986) - que comecei a desenvolver uma forma mais diarística. Comprei uma câmera Bolex e uma mesa de edição e fiz meu primeiro filme-retrato, Detel + Jón (1988/93). A partir daí, meu cinema desenvolveu uma espontaneidade mais diarística, longe de escrever roteiros e da ideia de fazer "filmes de arte". A forma diarística se desenvolve a partir de um diálogo interior com os meus arredores, uma conversa visual silenciosa. A fonte de inspiração é a vida quotidiana, a fonte que nunca para e se oferece a todos. É uma grande alegria e desafio transformar meu diálogo interior em filme. Anos atrás, vi uma mãe com seu bebê andando pelas ruas e pensei: "As mães são as verdadeiras filósofas, porque estão excluídas do chamado mundo produtivo, têm uma forma diferente de pensar e sentir a vida". Eu me sinto como elas, mas coloco meus sentimentos e impressões em filme.
 
Rossin: Quem são os cineastas que a influenciaram? Podemos facilmente pensar em Jonas Mekas, mas sinto que você é bem diferente dele: não há narcisismo em seu trabalho. Você é apenas uma parte da realidade que está filmando. E, acima de tudo, você é uma mulher!
 
Aurand: A cineasta e fotógrafa alemã Elfi Mikesch foi muito importante para mim quando comecei, por seu interesse por gêneros mistos. Eu a trouxe para a escola e trabalhamos com ela. Blaue Matrosen (1975), de Ulrike Ottinger, me fascinava por sua estrutura fragmentária, imperfeição pretendida e artifício. O trabalho de Maya Deren me impressionou, mas ficou mais distante, o mesmo com Jean Cocteau. O início do Notebook (1962), de Marie Menken, apenas um breve momento em que um pato branco nada na borda superior do quadro, me deu uma visão repentina e forte de seu trabalho. Fiquei encantada e trouxe todos os seus filmes para a distribuição do Arsenal (Berlim). Momentos nos filmes de Margaret Tait me dão muita alegria e me trazem paz interior. Ver The Stoas, de Robert Beavers, abriu algo completamente novo - sem saber de onde veio, algo importante falou para mim por de trás da tela. Desde o início, algumas de minhas colegas de escola e depois amigas cineastas próximas, como Ulrike Pfeiffer, Renate Sami, Maria Lang, Helga Fanderl e Jeannette Muñoz, são fontes importantes de comunicação e reflexão sobre cinema para mim. Nós nos conhecemos, nossas diferenças e semelhanças, e isso é útil. Todas as minhas colaborações cinematográficas são baseadas em inspiração compartilhada.
 
Rossin: Como você consegue ficar à distância certa das pessoas que você está filmando? Sinto algo como uma ética em seu trabalho de câmera: estar perto das pessoas, mas não demasiadamente perto. Este é o segredo do seu cinema íntimo para mim.
 
Aurand: Gosto da ideia de um breve "toque", não é necessário ficar muito tempo para entrar em contato com alguém. Minha abordagem às vezes é como um balanço - ir embora, voltar e ir embora e voltar novamente. Muitas vezes não conheço as pessoas que filmo, mas mesmo quando as conheço muito bem, gosto de breves momentos de comunicação. O mesmo acontece com um som, você não precisa ouvir uma música inteira, um pouco de música é suficiente para evocar uma emoção. As emoções são ecos de uma imagem ou de um som. Elas ficam em nós. Imagens e sons desaparecem, a emoção e a memória ficam.
 
Rossin: Vamos falar de Margaret Tait: Ela não é conhecida aqui na França. Você pode fazer um retrato dela?
 
Aurand: Meu primeiro encontro com Margaret Tait foi o de assistir seus filmes, em uma mesa de edição no meio do escritório da Cooperativa em Londres, em 1993. E lá estava, a forte intimidade e a fragilidade muito poderosa, que mais tarde senti ao conhecer Margaret Tait em pessoa. Respeito muito a carreira dela. Ela nunca desistiu, mesmo passando por momentos difíceis. Ela continuou fazendo e desenvolvendo sua própria maneira de fazer cinema. Se você ver Um retrato de Ga, é inacreditável que ela tenha feito um filme assim já em 1952, é incrível! Também seu primeiro filme, Três esboços de retratos, tem uma edição incrível. Acabei de mostrar o filme em Berlim. Seu tom e imagens pessoais e como ela move a câmera, como ela olha para o mundo, é tão refrescante, um presente raro! Margaret é uma poetisa. Nenhum cineasta acha seu próprio jeito estranho ou difícil de entender, mas outros podem achar os filmes complicados ou banais.
 
Rossin: Ela passou a maior parte de sua vida na Escócia e nas Ilhas Orkney, mesmo que durante a guerra tenha trabalhado na Índia e depois tenha estudado na Itália. Você viajou ao redor do mundo: podemos sentir o mesmo espírito e amor pela vida em vocês duas. Vocês duas são cineastas de lugares e retratos. Ela influenciou seu trabalho?
 
Aurand: Não sei. Talvez eu descubra vendo nossos filmes juntos. O ritmo de Margaret, sua maneira de mover a câmera e suas imagens são bem diferentes do meu cinema, mas compartilhamos o interesse por "pequenas" coisas e pessoas. Sua atitude poética positiva e sua coragem de seguir seu próprio caminho são coisas que ficam comigo sempre.
 
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