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Jogos de poder: A Jamaica de Perry Henzell
 
Era um período mágico nos guetos da capital nos anos 70 para a primeira geração da juventude preta tropical favelada que podia ir ao cinema e se ver na tela, que ligava o rádio e ouvia pessoas conhecidas cantando sobre suas próprias preocupações. "Eu quero minha parte agora, esta noite!", gritava Jimmy Cliff da tela de cinema, e a audiência massiva vibrava sempre. "Get up, stand up! Stand up for your rights!", cantava The Wailers em cem jukeboxes e sound systems por toda a ilha, e a mensagem ecoava entre as rodovias, as ruas e nas vilas pelas montanhas. "Se não aqui, onde? Se não agora, quando?" Havia um forte sentimento entre os jovens da cidade de que a conquista dependia deles; de que se não conquistassem agora, ninguém pobre ou preto conseguiria novamente. "Lembra-se dos dias da escravidão?", perguntava Burning Spear. "Por favor, lembre-se... É adequado a você se lembrar..."
 
- Tradução livre do trecho do romance Power Game (1982), de Perry Henzel

 
Quando Perry Henzell nasceu, em 1936, a Jamaica era uma colônia britânica cuja principal fonte de renda era a plantação de cana-de-açúcar. Membro de uma família abastada de fazendeiros, ele cresceu livre entre a plantação e a praia, até ser enviado para estudar na Inglaterra, em uma escola tradicional, onde sentiu pela primeira vez o fardo de fazer parte de uma elite socioeconômica recalcada. Chegou a estudar arquitetura em Montreal no início da década de 1950, porém abandonou o curso e retornou para a Europa, onde viveu viajando de carona e trabalhando como assistente de produção na BBC após ser deserdado pelo pai.
 
Henzell voltou para a Jamaica em 1959 e abriu uma produtora de publicidade. Nesse período, a ilha passava por um processo gradual de independência, que se concluiu em 1962, com um sistema parlamentarista bipartidário liderado pelo primeiro-ministro conservador Alexander Bustamante, cujo partido governaria o novo país durante a primeira década de sua existência. Henzell, que nutria uma paixão pela Jamaica e por seu povo, utilizou a estrutura de sua produtora para transformar seu entorno em cinema. Ele tomou como exemplo os cineastas Satyajit Ray e Federico Fellini, que projetaram para o mundo suas visões da Índia e da Itália, e buscou, de forma similar, usar a vida jamaicana como material bruto para seu trabalho.
 
O filme resultante, Balada sangrenta (The Harder They Come, 1972), foi o primeiro longa-metragem de ficção a ser realizado inteiramente na Jamaica independente. Henzell concebeu o filme como parte de uma trilogia, com intenção de colocar em diálogo a vida rural e a urbana da ilha. Nessa primeira parte, um jovem do campo viaja para a capital Kingston para fazer sua fortuna. O filme - roteirizado em parceria com o dramaturgo jamaicano Trevor D. Rhone - se baseia na vida de Rhyging (1924-1948), um criminoso jamaicano que se tornou um herói popular, símbolo da resistência à violência policial. Embora Henzell soubesse que a escolha desse personagem agradaria potenciais investidores, ele também buscava expressar a voz do povo jamaicano e suas frustrações frente a um sistema nacional corrupto e negligente. E, para dar voz ao povo, o diretor escalou um elenco composto majoritariamente por atores não profissionais ou estreantes no cinema, entre eles o protagonista do filme - Jimmy Cliff.
 
Na época, Cliff (que nasceu com o nome de James Chambers em 1944) já era um conhecido músico de reggae, e vivia em Londres desde meados da década de 1960, porém compartilhava experiências similares às que Henzell procurava retratar. Cliff e Henzell acrescentaram à história do personagem de Ivanhoe Martin (o nome verdadeiro de Rhyging) detalhes da vida do cantor para fazer do bandido um músico aspirante que busca sucesso na cidade e é ludibriado pela estrutura monopolizadora e exploratória do meio musical local. Além de protagonizar o filme, Cliff compôs parte da trilha sonora, tendo gravado pela primeira vez a canção-tema do filme - "The Harder They Come"- em uma tomada durante as filmagens.
 
No estúdio de gravação, assistimos também ao grupo veterano Toots and the Maytals, e presenciamos o comportamento opulento do produtor musical Hilton (Bob Charlton, que na vida real era um rico vendedor de seguros). Conforme Balada sangrenta era rodado - um processo que durou 18 meses, com várias pausas nas filmagens por falta de orçamento -, crescia o interesse local em fazer parte da empreitada. A recepção entusiasmada à estreia mundial do filme, em junho de 1972 - três meses após a vitória eleitoral de um novo primeiro-ministro, Michael Manley, com um programa socialista para o país -, foi antecipada em sua cena final, na qual uma plateia de cinema aplaude imagens de Ivanhoe Martin lutando contra os militares no estilo de um faroeste. Em uma entrevista gravada para um documentário de 2005, Henzell comentou sobre a noite de estreia: "Não há impacto maior que se possa ter do que mostrar uma sociedade a si mesma na tela pela primeira vez". (Um trecho da entrevista pode ser conferido aqui).
 
Apesar das dificuldades iniciais com a distribuição internacional do filme (muitos dos acordos sendo negociados pelo próprio Henzell), Balada sangrenta tornou-se um sucesso cult. A trilha sonora do filme foi um sucesso ainda maior e colaborou com a popularização da música reggae mundo afora, tendo sido lançada um ano antes do emblemático álbum de Bob Marley and the Wailers, Catch a Fire (1973).
 
Logo após a estreia de Balada sangrenta, Henzell iniciou as filmagens da segunda parte da trilogia, Não há lugar como nosso lar (No Place Like Home, 2006). Aos olhos do cineasta, o novo filme teria uma abrangência maior de público e daria um passo adiante em seu método de ficcionalização da realidade, utilizando como referência os trabalhos de cineastas como John Cassavetes, Ken Loach e Guido Pontecorvo. Neste processo, uma história mostrando a realidade jamaicana surgiria a partir de interações entre atores estrangeiros e locais interpretando versões de si mesmos, combinando cenas espontâneas com trechos roteirizados para avançar a história.
 
Para a realização do filme, Henzell contratou uma equipe real de cinema publicitário de Nova York para rodar um comercial de xampu na cidade portuária de Ocho Rios. Enquanto a equipe rodava o comercial em 35 mm, o cineasta rodava seu filme em Super 16. Henzell tinha a visão clara de que o filme tomaria sua forma ao longo do processo, e que apenas a imprevisibilidade poderia trazer à tela a naturalidade que ele almejava.
 
Não há lugar como nosso lar começa com a equipe em ação. Horas de trabalho passam, e a mesma cena é repetida vez após vez para expressar a satisfação imensurável que o xampu provoca. O paraíso se torna um inferno quando todas as atenções estão voltadas para uma repetição enfadonha. Quando P.J.Soles, a modelo, cantora e atriz aspirante (que faria sucesso subsequentemente em filmes como Carrie, a estranha e Halloween - A noite do terror), desaparece do set de filmagem, cabe à produtora Susan (Susan O'Meara) encontrá-la. Susan pede ajuda a Carl (Carl Bradshaw), o motorista local contratado pela equipe, que planeja desenvolver turisticamente uma região ainda intocada no oeste da ilha, chamada Negril, com a participação de seus moradores.
 
Os dois embarcam em uma viagem pela ilha, e, assim, Não há lugar como nosso lar adota um tom de road movie, apoiado pelo elenco local. A jornada é cheia de encontros memoráveis com pequenos empreendedores, como a fabricante de um condicionador em barras que comercializa seu produto no boca a boca; um agricultor que retorna ao campo após ter vivido por anos na capital, para se curar de um câncer através da natureza; e jovens estrangeiros que trocaram os sapatos pelos pés na areia. Através dos olhos e ouvidos de Susan, o espectador é convidado a refletir sobre os valores materiais e imateriais da vida. Logo no início da viagem, presenciamos uma conversa entre a nova-iorquina e o jamaicano, em que ela conta como seu marido não consegue parar de trabalhar, pois isso representaria a perda de clientes - ele é extremamente bem-sucedido e ama o que faz, e isso lhe custa apenas todos os dias da semana e uma queimação permanente no estômago. Intrigado, Carl conclui: ele ganha um saco de dinheiro que não pode gastar.
 
Carl Bradshaw foi um dos poucos atores profissionais no elenco do filme. Ele havia interpretado um vendedor de drogas e rival do personagem de Jimmy Cliff em Balada sangrenta e, dessa vez, interage com turistas e moradores locais na busca pela atriz sumida, enquanto faz seus próprios pequenos negócios. É por meio de Carl que compreendemos as dificuldades que a população passa para conseguir sobreviver de forma autônoma. Ouvimos relatos de batidas policiais aterrorizando os locais e os turistas, a mando de poderosos que buscam controlar a região. Entendemos que há uma guerra entre aqueles que estão tentando ganhar a vida sem se tornarem escravos do "desenvolvimento" e o poder sem rosto do dinheiro.
 
Em determinado momento, junta-se a Susan e Carl o pescador rastafári Countryman - uma figura já conhecida internacionalmente ao aparecer em 1973 como representante de sua religião e cultura em uma longa matéria da revista Rolling Stone chamada "The Wild Side of Paradise"  (O lado selvagem do paraíso). Ele pergunta a Susan: "Por que não tem filhos? Com que brinca em casa? Não se sente sozinha? Eu me sentiria tão sozinho." E, assim, ao som do reggae, crianças dançando, os animais, a brisa, a natureza ao redor, nos deliciamos ao ver Susan render-se à experiência. Essa sensação de prazer dura até sermos novamente usurpados dela pela ameaça do "progresso" - que se impõe cada vez mais conforme o grupo se aproxima de Kingston, uma cidade ao mesmo tempo em construção e em ruínas.
 
Henzell teve que interromper as filmagens algumas vezes, por falta de orçamento, estendendo a produção de Não há lugar como nosso lar por oito anos. Durante este período, o cineasta enviou o material bruto do filme para um laboratório em Nova York para ser armazenado. Em 1981, Henzell recebeu a notícia de que o laboratório havia falido e, ao viajar para Nova York para recuperar seu material, descobriu que o havia perdido. Financeiramente quebrado e emocionalmente devastado, ele resolveu deixar o filme para trás.
 
Ele entrou em reclusão e passou a dedicar-se à escrita de romances, a começar com a terceira parte da trilogia, Power Game, publicado originalmente em 1982. O livro é um thriller social que retrata interações entre diversos personagens - políticos, banqueiros, membros da grande mídia, traficantes de maconha - que representam cruzamentos da sociedade jamaicana. Enquanto Balada sangrenta trata da vida de um personagem tão pobre que acaba se tornando vítima da sociedade, e Não há lugar como nosso lar, dos desafios enfrentados por uma classe emergente, Power Game aborda os conflitos entre ricos e poderosos e seu envolvimento nas dinâmicas de poder na Jamaica. E, após sua publicação, Henzell acreditou ter concluído seu trabalho com a trilogia. Nas décadas seguintes, ele continuou a escrever romances e peças de teatro, trabalhou na reforma do sistema prisional jamaicano, e a família Henzell - tendo à frente a esposa Sally, que atuou como diretora de arte nos dois filmes -, abriu uma pousada e restaurante, no sul da ilha, chamada Jakes.
 
Em 2004, eles receberam a visita de David Garonzik, que então trabalhava como projecionista na produtora e distribuidora norte-americana Miramax. Garonzik havia recentemente assistido a Balada sangrenta e se apaixonado pelo filme. Ele queria não apenas conhecer a Jamaica, mas também entender por que Henzell não havia realizado um segundo filme. Garonzik ficou surpreso ao saber a história de Não há lugar como nosso lar, e mais surpreso ainda quando, algumas semanas depois, recebeu de Henzell pelo correio um VHS degradado de uma montagem de 50 minutos do filme - o único material que havia sobrado.
 
Garonzik embarcou em uma missão para encontrar o material perdido por meio de seus contatos na indústria de cinema. Afinal, ele e Justine Henzell (filha de Sally e Perry, e também cineasta) encontraram 450 latas de película do filme em um galpão em Nova Jersey. Eles se dedicaram à restauração do material, severamente danificado, recebendo o apoio de algumas casas de pós-produção que fizeram seus serviços gratuitamente. Alguns atores, como Susan O'Meara, foram chamados para regravar seus diálogos em estúdio. E Henzell, que se animou com a possibilidade de concluir a obra, passou a trabalhar entre a edição nos Estados Unidos e a produção de novas imagens, retomando as filmagens na Jamaica pela primeira vez em 25 anos.
 
Um corte bruto de Não há lugar como nosso lar foi mostrado em uma sessão especial em setembro de 2006 no Festival Internacional de Cinema de Toronto, com a presença de Henzell. A estreia jamaicana foi realizada no início de dezembro daquele ano, no Flashpoint Film Festival. Henzell morreu às vésperas da sessão, após viver seis anos com câncer, e foi homenageado por uma plateia lotada.
 
Levou mais de uma década para a família de Henzell e os produtores de Não há lugar como nosso lar conseguirem lançar o filme comercialmente, devido em parte às autorizações dos direitos autorais das 17 músicas que aparecem no filme (de artistas pop como Neil Diamond e Carly Simon junto a astros do reggae). A primeira entidade a dar sua permissão foi a família de Bob Marley, que liberou "Coming in From the Cold" e "Stir It Up" por valores coerentes com a realidade da produção. Após saber disso, outros detentores seguiram o exemplo, e o segundo e último filme de Perry Henzell finalmente ganhou distribuição em 2019.
 
Não há lugar como nosso lar foi lançado tanto em salas quanto em home video, inclusive em uma edição de luxo (lançada pela distribuidora norte-americana Shout! Factory) com uma nova remasterização de Balada sangrenta. O mês de junho de 2022 marca os 50 anos da estreia mundial do primeiro filme de Henzell. Entre os gestos comemorativos realizados, há uma exposição de obras de arte de 30 mais de artistas jamaicanos contemporâneos inspiradas em Balada sangrenta, organizada pela família Henzell e montada em sua casa, onde cenas do filme foram rodadas. (Informações sobre a exposição, que segue em cartaz até o dia 28 de agosto de 2022 na Jamaica, pode ser encontrada aqui no facebook e aqui no twitter)
 

A Sessão Mutual Films de julho de 2022 é dedicada à memória de Arnaldo Andrade (1950-2022), professor e pesquisador de engenharia de materiais no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares, na Universidade de São Paulo, e um grande fã de Balada sangrenta.
 

 
SINOPSES DOS FILMES
 
ENTREVISTA COM JUSTINE HENZELL
 
Web site IMS - Sessão Mutual Films - Informações e ingressos - Rio de Janeiro e São Paulo
MUTUAL FILMS