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"Enquanto o sol brilhar: Justine Henzell fala sobre os cinquenta anos de Balada sangrenta"
 
A entrevista a seguir com Justine Henzell (filha de Perry e Sally Henzell, atualmente envolvida com a circulação dos filmes do pai) foi conduzida em inglês pelo crítico e curador Ashley Clark e publicado em fevereiro de 2022, na ocasião da retrospectiva online "Roots & Revolution: Reggae on Film", que apareceu no Criterion Channel. O texto original pode ser lido através do site The Criterion Collection. Sua tradução para português tem a permissão de Clark e da Criterion.
 
Lançado em 1972, o emocionante drama de Perry Henzell, Balada sangrenta, estrelado pelo ícone do reggae Jimmy Cliff como Ivanhoe Martin, o cantor que se tornou um fora-da-lei, foi um dos primeiros filmes a apresentar com destaque a música reggae tanto como tema quanto em sua trilha sonora. O filme virou um hit, enquanto o álbum criou uma sensação internacional, destacando sucessos recentes de um gênero que apenas começou a surgir alguns anos antes. Uma tempestade perfeita de ritmo, baixo, melodia e mensagens políticas e espirituais, o reggae nasceu e explodiu na Jamaica no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, e desde então se tornou uma das formas de música mais influentes e populares em todo o mundo. No documentário Roots Rock Reggae, de 1977, Jimmy Cliff descreve-o como "o grito do povo", um encapsulamento conciso de seu conteúdo lírico direto e documental, e seu apelo empático.
 
Cinquenta anos se passaram desde a estreia de Balada sangrenta, e o filme mantém uma presença cultural icônica, em grande parte graças à filha de seu diretor, Justine, que é a principal pessoa responsável por manter seu legado. (Justine também é cineasta e co-fundadora do Calabash International Literary Festival, em Treasure Beach, na Jamaica.) Atualmente, ela está organizando uma grande festa de aniversário em Kingston. Prevista para acontecer em junho na 10A West, Kings House Road - a localização da produtora de Perry Henzell e efetivamente o local de nascimento do filme - esta celebração contará com mais de trinta artistas jamaicanos que trabalham na ilha e no exterior e que foram inspirados pelo filme.
 
Recentemente, conversei com Justine Henzell sobre a produção de Balada sangrenta, a importância contínua do filme e sua trilha sonora, e a história por trás da continuação e segundo filme de seu pai, Não há lugar como nosso lar, que por muitos anos foi considerado perdido.
 
Como você vê o legado de Balada sangrenta? O filme ainda é tão importante culturalmente.
 
É incrível. A boa recepção que o filme tem recebido, universalmente, é fantástica. Tenho emoções agridoces sobre a indústria cinematográfica da Jamaica neste momento, porque cinquenta anos depois deveríamos ter tido muito mais filmes como Balada sangrenta, não em termos de estilo ou gênero, mas em termos de alcance e sucesso. Ainda não tivemos isso, e é um pouco decepcionante, mas sinto que estamos prontos para uma explosão de filmes e séries jamaicanas, que foi adiada por dois anos por causa do COVID. Minha esperança é que a atenção que o quinquagésimo aniversário receberá seja útil para os jovens criadores, cineastas e poetas que estão trabalhando agora - que a atenção dada ao Balada sangrenta realmente se espalhe para o trabalho deles. Jamais haverá outro Balada sangrenta, porque o primeiro é sempre o primeiro, mas o filme informou e inspirou trabalhos novos e diferentes.
 
O que há no filme que você acha que cativou tanto a imaginação das pessoas?
 
Eu sei que é um clichê hoje em dia, mas eu acho que é a autenticidade. Perry tomou a decisão muito cedo, e muito conscientemente, de fazer isso para um público jamaicano, não para um público estrangeiro, e isso valeu a pena a longo prazo.
 
Como surgiu o filme?
 
Balada sangrenta levou anos para ser realizado. Perry trabalhou na BBC, recebeu seu treinamento e voltou para a Jamaica quando obtivemos a independência em 1962, porque ele queria fazer parte do novo país independente. Ele trabalhou em publicidade e fez muitos, muitos comerciais e propaganda. Ele foi a primeira pessoa a colocar o inglês jamaicano em propaganda, que naquela época era exibida nos cinemas. Ele então quis, como muitos diretores, fazer seu primeiro longa-metragem, e lembrou-se da história de Rhyging, um verdadeiro fora-da-lei jamaicano e herói popular que era notório quando Perry era jovem. Rhyging cativou todos na Jamaica na época. Perry pensou que este seria um bom veículo para o filme, e assim foi o início de Balada sangrenta. Mas quando Jimmy Cliff foi escalado, o personagem do filme se tornou um cantor. A escolha de Jimmy foi essencial para o desenvolvimento da história, e o filme chegou a espelhar a própria história de vida de Jimmy como um menino do campo chegando à cidade e passando por todo o processo da indústria dos estúdios e gravação de música.
 
Você pode falar sobre o impacto do Balada sangrenta para a música reggae em geral?
 
Foi enorme. Balada sangrenta - o filme e o álbum que o acompanhou [The Harder They Come, também o nome original do filme] - e Bob Marley em turnê levaram o reggae ao mundo, sem dúvida. E, devido à diversidade das faixas do álbum - não é apenas um artista ou um tom -, é o perfeito sampler de introdução ao reggae para qualquer um. "Johnny Too Bad" dos Slickers e "Sitting in Limbo" de Cliff não poderiam ser mais diferentes em tons, mas elas funcionam muito bem juntas. O álbum entrou para a lista de preservação na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos em 2021, o segundo álbum de reggae a receber essa honra, após Burnin', de Bob Marley and the Wailers. Deve ser dito, também, que as pessoas não percebem que não há partitura em Balada Sangrenta, porque a trilha sonora com canções preexistentes faz com que não se sinta falta de sua ausência. Esse foi um dos belos aspectos do cinema de Perry, que também está presente em Não há lugar como nosso lar - não há partitura, e você não sente falta dela. Perry foi brilhante em muitas maneiras. Ele era um ótimo diretor de atores que ajudou pessoas sem nenhuma experiência a darem grandes atuações, e ele era brilhante em usar música e sons para criar um clima.
 
Por que você acha que a música reggae é tão intrínseca à sociedade jamaicana?
 
Bem, lembre-se que o reggae é apenas um dos nossos gêneros. A música jamaicana não começa nem termina com o reggae. Temos toda a jogada, do ska ao rocksteady, do reggae ao dancehall, e agora há muitas fusões diferentes. A música jamaicana evoluiu junto à sociedade jamaicana. Mas o reggae foi o que se tornou global, e fez isso porque a narrativa e a musicalidade dele eram impecáveis. Quando se ouvia as histórias nas músicas de reggae, você era pego pela energia delas. Havia canções de protesto, havia canções de amor. O reggae era multidimensional em termos de humor, sem dúvida, muito mais do que os gêneros que vieram antes ou depois dele na Jamaica. Para mim, é por isso que o reggae resistiu e atravessou épocas e públicos tão efetivamente.
 
Você pode falar sobre o que Jimmy Cliff trouxe para o filme? É um trabalho notável da parte dele, especialmente para um ator não profissional.
 
Foi absolutamente a primeira vez que Jimmy atuou em um filme. Ele já estava bem estabelecido como artista musical na Jamaica. Todas as faixas do álbum, fora "The Harder They Come", já haviam sido gravadas por Jimmy antes de ser escalado no papel do Ivan. Mas a gravação da música retratada no filme foi uma gravação real, e ele a escreveu depois de uma conversa com Perry durante as filmagens. Não foram escritos propriamente diálogos para Jimmy. Era uma situação em que Perry montava uma cena, explicava onde, na jornada, o personagem se encontrava naquela cena, e então ele deixava seus atores livres. Ele estava muito mais preocupado com as atuações do que com a localização da câmera ou a iluminação. Ele deixou a cenografia e o guarda-roupa para minha mãe, Sally, que fez um trabalho brilhante! E Jimmy simplesmente se destacou. Ele estava contando partes de sua própria história, mas também, trazendo sua incrível empatia para o personagem de Ivan.
 
Conte-me sobre a história por trás de Não há lugar como nosso lar, que seu pai concebeu como a continuação de Balada sangrenta.
 
Perry embarcou nas filmagens de Não há lugar como nosso lar logo após o lançamento de Balada sangrenta - bem, assim que pôde, porque levou anos para distribuir Balada sangrenta, e ele teve que fazer isso sozinho em todo o mundo. Uma vez que ele foi capaz de tirar uma pausa e refletir, ele passou a sentir que Balada sangrenta não era tão autêntico ou verité quanto poderia ter sido, mesmo que na minha opinião o filme realmente fosse! Ele queria dar um passo adiante com Não há lugar como nosso lugar. Foi muito difícil para ele encontrar investimento, porque Balada sangrenta não havia recuperado seu dinheiro naquele momento, e aqui estava ele querendo ser ainda mais experimental. Mas ele tinha três histórias em sua mente que sempre quis contar. Uma era sobre o menino do campo que vai à cidade, neste caso Kingston, e isso virou Balada sangrenta; a segunda era sobre a mulher da cidade que vai para o campo, Não há lugar como nosso lar. No filme, uma executiva de publicidade de Nova York, Susan [Susan O'Meara], vai à Jamaica para filmar um comercial, e o filme segue a jornada de descoberta em que ela embarca enquanto viaja pela Jamaica. E a terceira história, que Perry acabou escrevendo como romance, é Power Game, onde a cidade e o campo se chocam.
 
A produção de Não há lugar como nosso lar teve muitas paradas e recomeços, e ele não tinha dinheiro suficiente para armazenar o negativo. Foi filmado em celuloide, que tinha que ser armazenado adequadamente em uma instalação com ar condicionado. Ele pediu a alguém que o guardasse em Nova York e, quando foi buscá-lo, o depósito mostrou-lhe um filme que não era dele. Na verdade, era um filme pornô, e ele disse: "Não, não, isso não é meu". Novamente, isso era celuloide: não havia backup em um disco rígido como haveria hoje. Isso partiu seu coração e ele desistiu do filme porque não podia recriar o que havia capturado, e isso era aterrorizante para ele, que pudesse sentir aquela dor novamente.
 
Muitos, muitos anos depois, quando eu estava trabalhando com Perry em alguns outros projetos, liguei para as instalações de armazenamento em Nova Jersey e todos me disseram que não tinham nada. Mas, anos depois disso, a Island Records foi vendida para a Polygram, que foi vendida para a Universal, e eles fizeram um inventário de todo seu estoque, e o material do filme surgiu como pertencente à Island Records. Por meio desse processo, eles descobriram que o material não era deles, era de Perry. Conseguimos recuperar os negativos, que felizmente não tinham síndrome do vinagre. Perry foi capaz de ver as imagens, filmar alguns planos adicionais e fazer um corte bruto que foi exibido no Festival Internacional de Cinema de Toronto em setembro de 2006. Ele faleceu após uma batalha de seis anos contra o câncer em novembro daquele mesmo ano. Nós realmente sentimos que ele desistiu de lutar porque finalmente tinha visto Não há lugar como nosso lar na telona com uma plateia. E ele sentiu que poderia partir. Nós marcamos, como uma família, a primeira sessão do filme na Jamaica para novembro, e ele morreu na noite anterior. Fomos em frente, pegamos o filme e o mostramos em homenagem a Perry. Após esse processo, o filme passou por um longo período de restauração, e fizemos acordos para licenciar as músicas. Havia dois cavalheiros, David Garonzik e Arthur Gorson, que trabalharam incansavelmente para que o filme chegasse ao ponto em que pudesse ser exibido no Criterion Channel, e estamos muito empolgados por haver uma plataforma onde as pessoas possam encontrar essa joia.
 
Não há lugar como nosso lar não é um "filme de reggae" na mesma linha de Balada sangrenta, e ainda assim, a música reggae aparece com destaque na trilha sonora. Uma das sequências mais memoráveis do filme é um encontro romântico entre Susan e seu amigo motorista Carl (interpretado por Carl Bradshaw) que é acompanhado pela música clássica de Bob Marley and the Wailers, "Stir It Up". Foi um desafio licenciar a música de Marley?
 
Foi a família Marley que nos ajudou a conseguir todo o resto. Cedella Marley (a filha de Bob e Rita Marley) aceitou uma proposta muito razoável, então pudemos ir a outras pessoas e dizer: "Os Marleys concordaram com isso, então você concorda, tendo conhecimento da história por de trás do filme?" Foi assim que conseguimos financiar as músicas. É uma trilha sonora incrível, com Bob Marley, John Denver e Etta James.
 
Você tem alguma lembrança especial e pessoal desses filmes?
 
Tenho duas. Uma é da produção de Balada sangrenta, quando eu era muito jovem e entrei no set onde eles estavam filmando a cena brutal de Jimmy sendo espancado pelas autoridades - isso não foi uma boa ideia da minha parte! Para Não há lugar como nosso lar, minha memória principal é estar na estrada com meu pai, minha mãe e meu irmão, como se estivéssemos de férias pela Jamaica. A equipe e o elenco eram nossa família. Se você olhar para a tela com atenção, verá de relance meu irmão e eu de bicicleta. Foi meu primeiro crédito em um filme!
 
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