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Histórias de pessoas comuns (Histoires de petites gens)
O franco (Le Franc) Djibril Diop Mambéty | Senegal/França/Suíça | 1994, 45', 35 mm para DCP
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A pequena vendedora de sol (La Petite vendeuse de soleil) Djibril Diop Mambéty | Senegal/França/Suíça | 1999, 45', 35 mm para DCP

 
O cineasta senegalês Djibril Diop Mambéty (1945-1998) voltou para a direção de longas-metragens após um hiato de quase 20 anos, com a grande produção Hienas (Hyènes, 1992), um dos mais renomados filmes africanos de sua década. Depois, cansado da experiência de realizar este filme, Mambéty mudou seu olhar na direção de quem ele chamou de "as pessoas comuns". Ele pretendia fazer um longa-metragem mais modesto, que seria composto por três médias-metragens, cada um focado em um protagonista que vive em condições precárias em Dacar e enfrenta dilemas práticos e morais ligados ao dinheiro. A terceira parte da série nunca foi filmada, pois o cineasta morreu precocemente de câncer de pulmão. As Histórias de pessoas comuns que existem hoje são as duas primeiras partes da série: O franco e A pequena vendedora de sol.
 
O franco observa um músico de rua chamado Marigo (interpretado por Dieye Ma Dieye, um músico que Mambéty conheceu em bares onde o ator tocava para ganhar uns trocados) e é contextualizado em um momento histórico em que houve uma grande desvalorização do franco CFA, usado na África Ocidental, provocada pelo governo francês. Após perder seu instrumento, o congoma, para a proprietária de seu dormitório (a renomada cantora Aminata Fall) por falta de pagamento de aluguel, Marigo tem a chance de adquirir um bilhete da loteria nacional premiado. Porém, o músico gracioso e desastrado precisa guardar o bilhete em um local seguro até o sorteio. Com um tom surrealista, observamos os sonhos de Marigo com seu congoma e as inúmeras oportunidades que o bilhete premiado lhe trará, levantando reflexões sobre onde suas prioridades devem ficar. Ao comentar o filme, Mambéty falou: "Eu espero que as crianças se tornem pessoas francas, ao invés de viverem atrás de francos". [1]
 
A pequena vendedora de sol acompanha a jornada de Sili Laam (Lissa Balera), uma obstinada menina de muletas que sai da periferia para o centro de Dacar em busca de trabalho para ajudar sua avó cega. Ela passa a vender o jornal pró-governo Sol e entra em rivalidade com outros jovens vendedores de jornais. Apesar das dificuldades de locomoção e do preconceito enfrentado por ser uma garota em um ambiente majoritariamente masculino, a esperançosa Sili conquista aliados que a ajudam a enfrentar seus obstáculos. Mambéty - que faleceu poucos dias antes da finalização do filme - dedica A pequena vendedora "à coragem das crianças de rua".
 
Os dois filmes de Histórias de pessoas comuns foram coproduções internacionais, e seus negativos originais de imagem e som ficaram com a produtora suíça Waka Films e sua fundadora, Silvia Voser, que os mantiveram em bom estado. Esses materiais foram utilizados para restaurações feitas em 2K, em 2018, por iniciativa de Voser, em parceria com o laboratório francês Éclair (agora L'Image Retrouvée) e o Institut Français, que incluiu os filmes no "20 Films pour 2020", um projeto da Cinémathèque Afrique voltado para a circulação não comercial do cinema africano. A gradação de cor das restaurações foi supervisionada por Voser e Wasis Diop, músico e irmão caçula do cineasta, que também trabalhou na produção original dos filmes.
 
[1] Citado em francês no curto documentário Le cinéma, c'est de la magie...Djibril Diop Mambéty, 1945-1998 (2022), dirigido por Silvia Voser.

 
As sessões de Histórias de pessoas comuns no IMS são realizadas com o apoio do Institut Français e da Cinemateca da Embaixada da França no Brasil.
 
            

 
"Na voz de Mambéty"
 
Os textos a seguir são descrições de Djibril Diop Mambéty sobre a série Histórias de pessoas comuns e seus dois filmes concluídos. Eles foram extraídos dos presskits oficiais no formato pdf dos filmes, O franco e A pequena vendedora de sol , na ocasião dos lançamentos de suas versões restauradas.
Agradecemos a Silvia Voser e a Waka Films pelos materiais, que foram traduzidos do francês para português por Giliane Ingratta Góes.
 

Sobre Histórias de pessoas comuns:
 
As pessoas comuns são aquelas que nunca terão uma conta bancária. Essas pessoas para quem o raiar do dia é o mesmo ponto de interrogação.
 
As pessoas comuns têm isso em comum: um coração puro num lenço de ingenuidade.
 
Mais corajoso do que um ingênuo você morre.
 
Vamos ser claros.
 
O título do filme O franco não designa apenas a moeda que se ganha ou se rouba - um franco francês, CFA africano ou franco suíço - mas também o homem franco.
 
O franco é o primeiro conto da trilogia "Histórias de pessoas comuns".
 
Virão depois A pequena vendedora de sol e O ladrão aprendiz. Três filmes mais ou menos curtos que acabarão por fazer um longa-metragem.
 

Sobre O franco:
 
Esta história de trinta minutos é um documentário-ficção.
 
O apego de um músico ao seu instrumento: o congoma. O congoma é uma caixa de madeira que amplifica, enquadra e difunde os sons de sete lâminas de aço. É originário das costas oestes-africanas. Um documentário sobre uma cidade. A Dacar de Marigo é aquela onde reina a LONASE , loteria nacional muito popular.
 
Uma cidade, um congoma, um trovador falido e sonhador. O filme nos levará a ver o Gólgota infernal do trovador Marigo.
 
Com o que sonha um músico em dificuldade senão com seu instrumento?
 
Marigo sonha com seu congoma, confiscado por sua maldosa locadora, por causa do não pagamento crônico de aluguéis.
 
Pobre músico Marigo. Esse congoma é sua vida.
 
Porém, a sorte faz com que Marigo se aproprie de um bilhete de loteria nacional.
 
Um documento precioso que ele vai colar cuidadosa e energicamente sobre sua porta, antes de cobri-lo com o pôster de um herói de infância que amarelava acima de sua cama bamba. É preciso proteger o bilhete de qualquer eventual enxerido, nunca se sabe....
 
Noite de sorteio. A roda gira, gira. A fortuna explode aos olhos e orelhas de Marigo. O número ganhador é 555. O do seu bilhete colado.
 
O problema é que Marigo colou para valer o bilhete na sua porta.
 
Não seja por isso! Ele arranca a porta e a leva sobre sua cabeça. Rumo à lotérica, a vários quilômetros dali, no centro da cidade.
 
Terrível Gólgota. Mas mais Jesus Cristo do que Marigo você morre!
 
Marigo milionário dentro de poucas horas. Mil congomas, uma orquestra, um avião particular. Como James Brown. Poxa!
 
Um último obstáculo se apresenta na boca do caixa: de fato ele ganhou o jackpot. Mas o número de controle, indispensável ao recebimento do dinheiro, se encontra no verso do bilhete colado. Droga!
 
Descolar o bilhete sem alterar o número de controle!
 
Eis a questão! Não seja por isso! Marigo tem uma ideia genial.
 
Sentado numa pedra, frente ao oceano, Marigo apresenta sua porta às preciosas caricias das ondas.
 
O mar pode ser terrível de noite, na costa oeste do Atlântico.
 
Boa sorte Marigo. Músico e mártir.
 

Sobre A pequena vendedora de sol :
 
Era uma vez...
Pode ter sido!
Quando foi, você estava lá?
É você quem conta, nós escutamos.
Então, ouçam!
Era uma vez
 
Desde há muito tempo, a venda de jornais ao brado nas ruas de Dacar era a prerrogativa dos meninos.
 
Mas naquela manhã essa dominação foi colocada em xeque.
 
O que aconteceu?
 
Sili - é assim que a menina é chamada - tem entre dez e treze anos. Ela vive nas calçadas, se locomove com o auxílio de duas muletas.
 
Ela estende a mão pedinte onde os meninos propõem jornais.
 
Mas esta manhã ela foi tão violentamente empurrada pelos meninos!
 
Ela rolou no asfalto. Sua canga se abriu, revelando sua frágil intimidade.
 
Suas muletas foram parar a metros de distância. Foi uma verdadeira batalha para ela se levantar. Ela está profundamente envergonhada.
 
De repente, sua decisão está tomada. Amanhã mesmo, ela venderá jornais como todo mundo. O que é válido para o homem o é igualmente para a mulher.
 
Esse pequeno mundo dos vendedores de jornais é implacável. Nele, ela encontrará a dor, o sonho... e enfim a amizade.
 
Esta história é um hino à coragem das crianças de rua.
 
Assim esta história se joga no mar.
O primeiro nariz
que a respirar, irá para o Paraíso.

 
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