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"Kummatty, o bicho-papão e a anatomia de uma restauração"
 
O texto a seguir foi originalmente escrito em inglês por Shivendra Singh Dungarpur, fundador e diretor da organização preservacionista e pedagógica indiana Film Heritage Foundation. Foi publicado em agosto de 2021, um mês após a estreia mundial da restauração de Kummatty, o bicho-papão, e segue disponível em sua versão original através do link Kummatty and the anatomy of a restoration.  A tradução para o português de uma versão reduzida do texto foi feita com o consentimento do autor. No texto, ele se refere ao diretor do filme como "G. Aravindan", nome artístico que o cineasta adotou em vida.
 
"Por que Kummatty, o bicho-papão, de G. Aravindan?" é invariavelmente a primeira pergunta que me fazem quando as pessoas ouvem sobre a colaboração da Film Heritage Foundation com a Film Foundation e a Fondazione Cineteca di Bologna para restaurar esta obra-prima poética, mas relativamente desconhecida, de 1979. Afinal, na Índia existem "clássicos" mais óbvios. Eu diria que a jornada que culminou na restauração do filme começou em 1992, quando eu ingressei no Film and Television Institute of India (FTII) em Pune, Maarashtra, para estudar roteiro e direção de cinema.
 
Estávamos imersos nos filmes dos mestres do cinema mundial - Tarkovsky, Buñuel, Bresson, Antonioni - mas, quase três décadas depois, ainda me lembro de sair do auditório do FTII após assistir o meu primeiro filme de Aravindan. Poético, gentil, visualmente muito poderoso, meditativo, com silêncios que falavam - fiquei cativado. Quando Aravindan foi questionado sobre o filme, ele disse: "O personagem de Kummatty chega como as estações. Ele representa a primavera. Ele vem de fato na primavera, quando a chuva acabou e as plantas estão verdes e floridas. Ele faz parte dessa natureza."
 
Assisti todos os filmes de Aravindan - Kanchana Sita, Thamp, Pokkuveyil, Chidambaram, para citar alguns. Cada um é diferente, uma exploração única da forma cinematográfica, impossível de classificar em termos de gêneros convencionais e estilos narrativos, livre dos ditames da teoria e cânone cinematográficos. Aravindan era um autodidata, e sua singularidade residia em criar poesia em celuloide através da tranquilidade e do silêncio, quase uma linguagem própria, profundamente influenciada pela paisagem, arte popular e cultura que o rodeavam. Seu cinema é como um espelho que reflete tanto a realidade quanto a magia.
 
Como Aravindan disse certa vez ao jornalista Sadanand Menon: "Minha máxima na forma de arte é a música raga-alapana, do norte da Índia, cujo único significado é a satisfação e a tranquilidade que transmite". A gentileza e tranquilidade de Aravindan adquiriram um aspeto mítico para nós no FTII. Há a história de que em seu set, ele nunca dizia "Corta!", mas tocava gentilmente o ombro do diretor de fotografia. Na minha opinião, ele é um dos maiores mestres do cinema indiano, cujo nome deveria estar ao lado de Satyajit Ray e Ritwik Ghatak.
 
Aravindan morreu em 1991, aos 56 anos, mas ainda hoje é uma lenda em Querala. As pessoas conheceram esse mestre do cinema como o cartunista responsável pela popular série de tirinhas Cheriya Manushyarum Valiya Lokavum (Homens pequenos e o mundo grande), no jornal Matrubhoomi, que foi publicada entre 1961 e 1973. Formado em botânica, Aravindan conseguiu um emprego no Departamento da Borracha em Querala e viajou por todo o estado, mas também arranjou tempo para pintar óleos e aquarelas, aprender música hindustani com Sarathchandra Marathe na cidade de Calicute e desempenhar um papel importante na formação de grupos de teatro em Querala.
 
Ele disse que se tornou cineasta por acidente. Aravindan e seu amigo dramaturgo Thikkodiyan estavam tentando obter fundos para fazer um filme escrito por Thikkodiyan. O autor Pattathuvila Karunakaran concordou em financiar o filme com a condição de que Aravindan o dirigisse. Apesar dos protestos de Aravindan de que não sabia nada sobre cinema, fora os filmes que assistia e os livros que havia lido, Karunakaran foi inflexível. E foi assim que surgiu o primeiro filme de Aravindan, Uttarayanam, que acabou ganhando cinco prêmios do estado de Querala e dois prêmios nacionais.
 
Esse foi o início da filmografia notável de um cineasta que estava na vanguarda do movimento do Cinema Paralelo em Querala e cuja obra chegou a ser celebrada globalmente. A Cinemateca Francesa o homenageou com uma retrospectiva em 1984 e seus filmes foram exibidos em festivais de todo o mundo, incluindo Berlim, Cannes e Londres. Em 17 anos de carreira, Aravindan dirigiu 10 longas-metragens de ficção e cinco documentários.
 
Embora Aravindan seja sem dúvida considerado um decano do movimento do cinema alternativo na Índia, seus filmes não têm circulado tanto. Quando o renomado crítico de cinema japonês Tadao Sato assistiu Kummatty, o bicho-papão pela primeira vez em 1982, ele disse que era o filme mais bonito que já tinha visto. Esse foi o começo do caso de amor do Japão com Aravindan.
 
O National Film Archive of India (NFAI), em Pune, digitalizou alguns de seus filmes há alguns anos, e Kummatty, o bicho-papão está disponível na página do YouTube do Potato Eaters Collective. Mas eu sabia que as versões digitalizadas não faziam justiça à visão original de um artista como Aravindan. Na minha mente, ainda consigo ver a beleza das imagens, as cores e as paisagens sonoras que me cativaram quando eu era estudante de cinema. Falei com o célebre diretor de fotografia e cineasta Shaji N. Karun, que compartilhava uma estreita ligação artística com Aravindan. Sua cinematografia pictórica capturou a visão de Aravindan em quase todos os filmes do diretor, que, por sua vez, compôs a música para o filme-chave de Karun, Piravi (O nascimento, 1989), vencedor do prêmio Câmera de Ouro em Cannes em 1989.
 
Ao conversar com Ramu Aravindan (filho do diretor) e outros que assistiram aos filmes de seu pai nos anos após seus primeiros lançamentos, a conclusão unânime foi que as versões digitalizadas eram uma farsa. Eu sabia que se seus filmes não fossem restaurados logo, ficaríamos com réplicas ruins que refletiriam uma mera sombra de sua arte. Comecei uma busca para avaliar os elementos em película dos filmes que restavam e logo percebi a urgência da situação - os negativos originais da câmera aparentemente estavam perdidos e as cópias disponíveis estavam se deteriorando rapidamente. Quando a Film Foundation, de Martin Scorsese, me pediu recomendações de filmes indianos para serem restaurados sob sua égide, os filmes de Aravindan foram uma escolha óbvia.
 
Tem sido uma jornada longa e desafiadora desde 2018, quando fiz o primeiro telefonema para Bina Paul, diretora artística do Festival Internacional de Cinema de Querala, abordando a ideia das restaurações. Emocionada, ela me apresentou a Ramu Aravindan, que por sua vez me apresentou ao produtor original de Aravindan, K. Ravindranathan Nair. Com um negócio bem-sucedido de exportação de castanha de caju, Nair certamente não era um produtor comum.
 
Eu estava ansioso para conhecer o homem que desempenhou um papel tão significativo no desenvolvimento da Nova Onda Malaiala ao produzir filmes marcantes como Elippathayam (A ratoeira, 1981) e Anantaram (Depois disso, 1987), ambos de Adoor Gopalakrishnan, e Kanchana Sita, Thamp e Kummatty, o bicho-papão (para citar alguns de Aravindan), todos sob a bandeira da General Pictures. Sua reputação como produtor de sonhos e filantropo o precedeu.
 
Eu tinha ouvido falar que os cineastas iam ao escritório de Nair para narrar seus roteiros, e, se ele aprovasse, ele sancionaria o financiamento, mas não interferiria na produção. Após quase um ano de e-mails e ligações com seu filho, Prakash, ele concordou em me encontrar. Viajei para a cidade queralense de Coulão no dia 1 de fevereiro de 2020 e entrei no escritório de Nair para encontrar com um senhor idoso em um mundu [roupa típica de Querala] e camisa simples. Falei com ele sobre nosso desejo de fazer restaurações em 4K de Kummatty, o bicho-papão e Thamp. Um homem de poucas palavras, ele prontamente deu permissão, e emitiu os documentos necessários para que pudéssemos começar a trabalhar.
 
Após receber o sinal verde oficial, lançamos uma chamada por meio da Federação Internacional de Arquivos de Cinema (FIAF) para arquivos e instituições membros em todo o mundo, em busca dos melhores elementos originais existentes. Para uma restauração em película, o melhor elemento é o negativo original da câmera, mas, infelizmente, nenhum dos negativos originais dos filmes de Aravindan sobreviveu - todos haviam derretido, e nada poderia ser recuperado do celuloide liquefeito. Este foi um grande golpe; cópias de exibição não oferecem a mesma latitude que um negativo fílmico.
 
Recebemos respostas da Biblioteca do Congresso, nos Estados Unidos, e do Fukuoka City Public Library Film Archive, no Japão. Eles tinham cópias em 35 mm, mas não estavam muito boas. As cópias japonesas tinham legendas em japonês. P.K.Nair, ex-diretor do NFAI, havia me falado sobre as cópias de Kummatty que tinham no acervo do instituto, inclusive uma sem legendas. Verifiquei isso com Kiran Dhiwar, oficial de preservação de filmes do NFAI, e ele me confirmou que tinham duas cópias do filme. A pedido dos produtores, o pessoal do NFAI se organizou para que eu as verificasse. Eu e Pravin Singh Sisodia, o preservacionista que trabalha com nossa fundação, descobrimos que essas cópias não estavam em boas condições. Mas elas foram enviadas para o laboratório L'Immagine Ritrovata em Bolonha, Itália, pois eram os melhores materiais que pudemos encontrar. Não fossem as cópias do NFAI, a restauração de Kummatty não teria sido possível.
 
Cecilia Cenciarelli, da Cinemateca de Bolonha, nos enviou um relatório de inspeção assustador. O laboratório descobriu que ambas as cópias estavam muito desgastadas, sujas e profundamente arranhadas. Uma das cópias tinha uma linha verde vertical consistente no lado direito da imagem que teve de ser removida por meio de trabalho manual quadro a quadro. A cor do positivo decaiu, e o ambiente natural do filme, um personagem essencial, perdeu sua rica paleta de céus, pastagens e folhagens e ficou todo magenta, apresentando um verdadeiro desafio para o colorista, que teve de passar dias trabalhando na gradação de cores. Mesmo com técnicos altamente qualificados trabalhando com a tecnologia digital mais recente, o laboratório disse que ainda havia partes do filme cujos detalhes não podiam ser recuperados.
 
Tivemos a boa sorte de Ramu Aravindan ter tirado fotos do local das filmagens, que se tornaram uma referência crucial para o colorista. Além disso, Shaji N. Karun participou de várias chamadas de Zoom comigo, Ramu e o colorista para garantir que a visão original de Aravindan fosse honrada no melhor padrão possível. Normalmente, tudo isso teria sido feito presencialmente, ao lado do colorista no laboratório. Fazer remotamente e verificar transferências de arquivos foi um processo longo e árduo.
 
Por ser também músico, Aravindan se preocupava em atingir, em seus filmes, a mistura perfeita de música e desenho de som. Infelizmente, no caso de Kummatty, nós fomos prejudicados pela ausência do negativo do som original e por ter de trabalhar com o som da cópia, que estava longe do ideal. Ramu nos ajudou a obter as fitas magnéticas de 1/4 de polegada de seu pai. Digitalizamos cerca de 15 delas na esperança de encontrar um material de origem melhor, mas não havia nenhum. No final, os engenheiros de som do laboratório tiveram de passar muitas horas limpando e remasterizando o som.
 
Mas o resultado mais do que compensou todas as lutas e armadilhas. O filme restaurado foi finalmente exibido no festival II Cinema Ritrovato, em Bolonha, no dia 25 de julho de 2021. Fiquei muito triste por não poder estar lá, mas os amigos que assistiram ficaram maravilhados com as imagens, cores e pura poesia do filme, que brilhou como uma joia na tela grande.
 
Nosso sonho agora é ter um lançamento da restauração de Kummatty no circuito de cinema indiano, seguido de exibições em festivais e disponibilidade em plataformas online de streaming. Afinal, o objetivo principal de preservar e restaurar um filme é dar-lhe uma nova vida e levá-lo a novos públicos, bem como lembrar aos que o viram e amaram décadas atrás a razão de terem se apaixonado por ele pela primeira vez.
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