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“Pontes: uma fronteira entre o secular e o sagrado”
 
O texto a seguir foi escrito por Keiichi Tanaami e publicado originalmente em japonês e em inglês como o prólogo ao catálogo da exposição abrangente Keiichi Tanaami: Adventures in Memory [Keiichi Tanaami: Aventuras na memória], que foi realizada entre agosto e novembro de 2024 no Centro Nacional de Arte em Tóquio. Agradecimentos vão ao Yuki Itaya e à equipe da galeria NANZUKA pela permissão de postar a tradução do texto para português. Mais informações sobre o trabalho de Tanaami podem ser encontradas no site da galeria. Adicionalmente, algumas entrevistas em vídeo com Tanaami, que foram conduzidas pelo pesquisador e curador de cinema japonês Julian Ross, podem ser encontradas no site da entidade sem fins lucrativos Collaborative Cataloging Japan.
 
Uma cabeça decepada, com os olhos revirados, jaz no leito de um rio, em meio a um abismo escuro. Grandes quantidades de sangue jorram do pescoço da mulher decapitada, deixando manchas de sangue na grama ao redor. A câmera se afasta lentamente para revelar uma ponte em arco pairando acima, e percebe-se que a cabeça brutalmente decepada jaz nas sombras abaixo dela.
 
Esta é uma cena de um filme que vi com meu pai quando era criança.
 
Esqueci completamente o título e o conteúdo do filme, mas acho que era um drama de época, filmado em preto e branco. No entanto, estranhamente, lembro-me da ponte em arco de um vermelho vivo e brilhante, assim como do sangue no pescoço da mulher. A coloração vermelha da ponte em arco, que não devia ter sido visível no filme PB, permanece para sempre profundamente arraigada na minha memória.

 
Quando toda a cidade de Tóquio estava sendo atingida por ataques aéreos, meus pais e eu muitas vezes no mesmo dia nos refugiávamos em um abrigo antiaéreo a poucos passos de casa. Os ataques aéreos noturnos transformavam instantaneamente a escuridão total em um mar de fogo, e as rajadas de ar escaldante e o estranho odor de algo queimando grudavam constantemente em meu corpo. As chamas carmesins cobriam todo o céu noturno, tremeluzindo e ondulando em um semicírculo como uma enorme ponte em arco. Os blocos de fogo, serpenteando como se fossem uma criatura viva, eram uma visão impressionantemente bela, mas dolorosa de se ver. Assim que os bombardeiros partiam e um breve momento de paz era restaurado, voltava para casa com minha mãe. Uma vez, a caminho de casa, espiei por um círculo de homens usando capuzes antiaéreos e avistei uma mulher no meio deles – seu rosto pálido, olhos revirados e dentes firmemente cerrados. Seus longos cabelos estavam enrolados em volta do pescoço como uma cobra, dando a impressão de que sua cabeça havia sido decepada e jogada no chão. Esta mulher, que morrera enquanto tentava desesperadamente se agarrar à vida, pareceu sorrir levemente para mim, com a expressão distorcida ao ser refletida pela luz das chamas.

 
Anos mais tarde, folheando casualmente um livro da obra do pintor Katsushika Hokusai [o pintor japonês mais conhecido do período Edo], fiquei atônito ao me deparar com uma pintura sinistra intitulada Cabeça decepada (1842). A imagem do rosto da mulher morta que eu havia visto quando criança me veio à mente instantaneamente e me encheu tanto de medo que me causou arrepios.

 
Meu quintal secreto, onde eu adorava brincar quando era menino, era o Meguro Gajoen, um restaurante japonês tradicional construído por volta de 1931. Era chamado de o “Palácio do Dragão Ryugujo do Período Showa”, pois tudo – do teto às paredes, escadas e até mesmo as portas de correr – era adornado com uma variedade de pinturas e esculturas coloridas e ornamentadas.
 
O Gajoen, que ficava ao lado do jardim de infância que eu frequentava (Gyoninzaka), era um “paraíso dos sonhos” para mim. Isso aconteceu na época do restaurante, antes da reforma, quando uma equipe calorosa e com um profundo senso de generosidade recebia todo mundo para brincar livremente.
 
Embora eu não tenha lembranças do mapeamento interno do edifício ou de sua estrutura arquitetônica, minhas lembranças das pinturas de lá são vívidas. Lembro-me claramente das mulheres vibrantes em quimonos deslumbrantes, em pé diante das flores de cerejeira em plena floração, e da expressão valente no rosto de Urashima Taro [o protagonista de um conto de fadas japonês do século VIII] enquanto ele cavalgava nas costas de uma tartaruga. Uma das que me lembro é uma pintura horizontal de gueixas com seus brilhantes penteados japoneses e quimonos coloridos, e no centro, uma ponte em arco vermelho vivo. Eu tinha um carinho imenso por essa pintura, talvez porque estivesse verdadeiramente encantado pelas cores ricas e pelo volume luxuriante da ponte.
 
Ao olhar para trás, acho difícil entender por que eu, quando criança, fiquei tão encantado com aquela pintura. Talvez eu tenha encontrado prazer em traçar a espessa camada de tinta vermelha na superfície da ponte com meus dedos.

 
Dentro do banheiro do reformado Hotel Gajoen, encontra-se uma ponte em arco mal instalada no centro. Ao olhar para essa ponte inútil, que ocupa a maior parte do interior do banheiro, lembro-me daquela superfície pintada de vermelho, aparentemente meio seca, que eu tocava delicadamente com a ponta dos dedos quando criança.
 
A estranha e dramática combinação dos mortos e da ponte em arco que testemunhei na cena de um filme e na noite de um ataque aéreo me convoca para um outro mundo que fica além da ponte.
 
A ponte em arco que considero mais bonita é a do Santuário Kameido Tenjin. Conhecida como uma das pontes mais características de Edo, foi retratada por Hokusai na série de 11 pinturas Vistas notáveis de pontes em várias províncias (Shokoku meikyo kiran, 1833-1834). Embora sua estrutura seja simples e direta, o formato semicircular aerodinâmico da ponte é simplesmente magnífico.
 
Outra ponte interessante é a que leva à Terra Pura Budista de Amitabha, na obra O caminho branco entre dois rios (Niga Byakudo, séculos XIII-XIV), pintada durante o período Kamakura [1185-1333]. É uma ponte entre esta vida e a vida após a morte, e o caminho branco deste mundo para o paraíso é usado como metáfora para ensinar às pessoas que desejam renascer na Terra Pura a dificuldade de ter fé para superar todos os desejos mundanos.
 
Leões na ponte de pedra do monte Tiantai (1779), de Soga Shohaku, é outra pintura fantástica e aterrorizante, quase vertiginosa. Centenas de leões, amontoados, escalam um penhasco e deslizam do que parece ser uma ponte de pedra em arco que se eleva no céu. O observador é atraído para a imagem e tomado por uma sensação de desconforto, como se também estivesse flutuando no espaço junto com os leões em queda. Observando a extensão de rochas além da ponte, percebe-se que nenhum dos leões conseguiu atravessá-la. O círculo infinito de leões, em queda constante, parece destacar o tema da “ponte intransponível”.

 
Nos velhos tempos, acreditava-se que um “mundo completamente diferente” existia sob as pontes. Como sugere o termo kawara-mono (literalmente “povo ribeirinho”, usado para se referir aos artistas itinerantes no Japão feudal), essas áreas tinham fortes laços com a indústria do entretenimento e foram o berço de todos os tipos de artes cênicas, da performance de rua ao kabuki. Termos depreciativos como kawara-kojiki (literalmente “mendigos ribeirinhos”) também eram prevalentes, e desde os tempos antigos a margem do rio tem sido um lugar profundamente ligado ao desenvolvimento do teatro. Havia também a crença de que se tratava de um mundo diferente da realidade – um lugar sobrenatural, excluído de todos os sistemas e ordens.
 
Espaços ribeirinhos sob as pontes eram repletos de shows de horrores estranhos e assustadores, onde atos e exibições que lançavam luz sobre o lado mais baixo da sociedade, como pescoçudos, mulheres-cobra e anões, espreitavam nas sombras. Além disso, mascarados pela ponte que funcionava como uma espécie de teto, eram também um local onde cadáveres eram escondidos e um ponto de encontro secreto para prostitutas que queriam vender os seus serviços.
 
Pontes também eram lugares associados a separações trágicas, como entre um homem e uma mulher que se separam após muita agonia, ou quando amantes se atiravam do parapeito em um suicídio duplo devido à dor e ao desespero. De qualquer forma, a conexão com a morte é muito forte, e isso é uma característica distinta das pontes japonesas.
 
Minhas obras artísticas recentes que abordam pontes como tema são inspiradas não apenas pela beleza estrutural das pontes, mas também por suas histórias repletas de anedotas e lendas misteriosas. Embora o caminho branco que conecta as margens dos rios em O caminho branco entre dois rios não seja uma ponte em si, ele é reconhecido como um elo entre este mundo e o mundo da iluminação (nirvana). Essa é uma forma de pensar que não existe na cultura ocidental. O mundo profundo e misterioso que a ponte abrange me apresenta uma sensação complexa e elusiva de mistério.
 
Se uma ponte é uma fronteira entre o secular e o sagrado, separando este mundo do mundo da vida após a morte, ela também pode ser um lugar de encontro. Quem canta a música que ecoa misteriosamente do outro lado da ponte? Gostaria de descobrir.
 
Não há fim para meu interesse na escuridão infinita que se espalha silenciosamente sob a ponte, um lugar místico e sobrenatural que abriga um enigma insondável.

 
A Hundred Bridges (Cem pontes, 2024, ), um dos meus últimos trabalhos expostos nesta ocasião, é uma instalação sobre o tema das pontes.
 
A inspiração para este trabalho veio de uma das pinturas singulares de Hokusai, Vista de cem pontes (1823).
 
Embora as formas e estruturas meticulosamente pintadas das pontes nesta pintura sejam impressionantes, o que é realmente marcante são as imagens de pontes que excedem a imaginação, com pontes em arco, pontes suspensas e pontes sobre montanhas rochosas íngremes.
 
Gostaria de dar uma espiada na mente surreal de Hokusai, que certa vez declarou: “Em um dia de outono, vi isso como uma visão na parede”.
 

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