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“O romance de Lena: Um fragmento”
O texto a seguir foi escrito pelo professor e pesquisador japonês de cinema silencioso Hiroshi Komatsu, da Universidade de Waseda. Ele foi publicado originalmente em 2008, em inglês e em alemão (traduzidos do japonês por Roland Domenig e Gabriele Pauer), no livro Josef von Sternberg: “The Case of Lena Smith”, co-editado por Alexander Horwath e Michael Omasta e publicado pelo Museu de Cinema da Áustria (Österreichisches Filmmuseum), através do seu selo FilmmuseumSynemaPublikationen. Agradecimentos vão ao Komatsu e à equipe do Museu pela sua permissão de postar a tradução para português da versão do texto em inglês. O Museu também lançou o fragmento de O romance de Lena em DVD, junto a Caçadores de salvação (o filme de estreia de Sternberg como diretor), através do selo Edition Filmmuseum. Em 2003, durante uma viagem à China, tive a sorte de descobrir um fragmento do filme O romance de Lena, de Josef von Sternberg, de 1929, em um antiquário na cidade de Dalian (uma vez Port Arthur). Há muitos filmes que sobreviveram apenas como fragmentos, e encontrar um não é uma ocasião rara, mas, de alguma forma, um fragmento de uma obra tão lendária desperta nossa imaginação mais do que outros. Muitos livros foram escritos sobre Josef von Sternberg: quando a politique des auteurs [“política dos autores”, uma forma de análise popularizada pela crítica francesa de cinema] ganhou influência na década de 1960, seu nome desempenhou um papel fundamental – e sua obra ainda é exibida regularmente. A maioria das monografias sobre o cinema de Sternberg, no entanto, concentra-se nos filmes com Marlene Dietrich, e são principalmente esses filmes que passam hoje. Os filmes dirigidos por Sternberg após o fim de sua colaboração com Dietrich nunca despertaram grande interesse. Da mesma forma, sua produção anterior a 1930 geralmente não é considerada no mesmo nível dos sete filmes que fez com Dietrich. Enquanto todos os filmes sonoros de Sternberg tenham sobrevivido, quatro de seus oito filmes silenciosos estão perdidos. O romance de Lena parece ter causado uma forte impressão em parte do público, mas o filme foi praticamente ignorado pelos críticos da época. Há duas razões possíveis para isso: primeiro, ele foi lançado em um momento de transição do cinema mudo para o sonoro. Embora fosse prática comum na época lançar uma versão com música e efeitos sonoros, além da versão silenciosa, o estúdio Paramount Pictures não escolheu esse caminho no caso do filme de Sternberg. E, em segundo lugar, O romance de Lena não era um produto de entretenimento de massa, mas um filme de arte relativamente sombrio – atraiu um público menor para começar e também não foi comercializado com muita força pelo Paramount. Em toda probabilidade, a reputação de O romance de Lena como uma obra-prima a ser redescoberta se deve às memórias daqueles que se entusiasmaram com o filme na época, combinadas com uma reavaliação de Sternberg pelos proponentes da politique des auteurs. Em 1966, em sua monografia The Films of Josef von Sternberg (Os filmes de Josef von Sternberg, 1966), o crítico norte-americano Andrew Sarris afirmou ter se dado conta de que “não existe nenhuma cópia conhecida de O romance de Lena”. Para Sarris, isso foi “duplamente lamentável, porque o filme parece ter sido mais pessoal do que Ele e a cigana [The Exquisite Sinner, um filme agora perdido que foi dirigido por Sternberg em 1926] e mais incomum do que O Super-Homem [The Drag Net, dirigido por Sternberg em 1928 e também perdido hoje]”. A observação de Sarris é típica da perspectiva autoral da crítica de cinema, que atribui grande valor à relação “pessoal” que um diretor pode ter com seus filmes. Em seu livro The Cinema of Josef von Sternberg (O cinema de Josef von Sternberg, 1971), o australiano John Baxter adota uma visão semelhante ao posicionar O romance de Lena (que Mary Meerson, arquivista da Cinemateca Francesa, chamou de o mais belo filme mudo já feito) como uma obra nostálgica dedicada à infância de Sternberg em Viena. A noção de que o filme poderia ter refletido diretamente as memórias pessoais do autor certamente contribuiu para a lenda em torno de O romance de Lena. Em 1970, o Museu de Arte Moderna em Nova York (MoMA) realizou uma exposição de fotos de filmes perdidos, entre eles, O romance de Lena. O catálogo da exposição abrange 30 importantes filmes mudos norte-americanos que, naquela época, eram considerados perdidos. Até onde sei, 10 desses 30 filmes foram recuperados, parcial ou integralmente. O filme de Sternberg também está entre as 27 obras examinadas no livro do autor norte-americano Frank Thompson Filmes perdidos: Filmes importantes que desapareceram (Lost Films: Important Movies That Disappeared, 1996). O fragmento em 35 mm de O romance de Lena que descobri tem aproximadamente 100 metros de comprimento. A uma velocidade de projeção de 22 quadros por segundo, isso equivale a apenas quatro minutos. Do ponto de vista crítico, no entanto, ainda é um documento altamente significativo: contém o cerne da sequência em que Lena e seus amigos se divertem no Prater [um grande parque de diversões fundado no século XVIII no centro da Viena]. Ao comparar o fragmento com a lista dos planos detalhado por Masaru Takada em 1929 para o periódico de cinema Eiga Orai, descobrimos que ele representa os planos 36 a 61 do filme – o final do primeiro rolo, compreendendo cerca de metade dos planos deste rolo. Como também podemos ver pelo trabalho de Takada, as tomadas individuais são comparativamente curtas e há uma sequência de dissoluções no início do fragmento. O que Takada não notou foram algumas sobreposições adicionais. Particularmente impressionantes são as imagens da multidão de visitantes no Prater, que são sobrepostas a uma imagem de águas turbulentas. Essa técnica, inspirada nos filmes de vanguarda europeus da década de 1920, também foi utilizada em vários longas-metragens realizados no final da década. Nos Estados Unidos, foi usada principalmente por diretores que imigraram da Europa, como o húngaro Paul Fejos (Pál Fejos) e o alemão Paul Leni. Sternberg já havia mostrado reflexos de figuras humanas em superfícies aquosas em seu longa de estreia Caçadores de salvação, mas a sequência no fragmento de O romance de Lena é muito mais sofisticada que isso. É lamentável que nenhum dos planos interiores de O romance de Lena, que fontes da época descreveram como “expressionistas”, tenha sobrevivido. Se observarmos as inúmeras imagens stills do filme que sobreviveram, podemos frequentemente detectar as sombras de grades ou barras. Também vemos que a cena de Lena esperando em frente ao café não é um plano exterior, e sim, filmado em um ambiente de estúdio estilizado. De forma similar, o estilo narrativo elíptico de Sternberg era elogiado na época. Em uma crítica do filme escrita em 1929 para a publicação Eiga Hyoron, o crítico Hirotaka Terasaki escreveu: “Instado a obter 300 coroas, Franz pega as 700 de Lena para aumentá-las por meio de jogos de azar. Isso é sobreposto a uma tomada de uma mesa de roleta, seguida por uma imagem de Franz escrevendo uma carta. Assim, a cena do jogo é apenas insinuada. O público recebe uma premonição sinistra, mas imediatamente depois Franz recebe Lena, que veio vê-lo, como se nada tivesse acontecido. Lena pergunta sobre o dinheiro dela, mas Franz não responde. Ele lhe dá um beijo na bochecha, volta para o quarto e começa a pentear o cabelo em frente ao espelho. Ele sai do enquadramento e imediatamente vemos fumaça saindo da arma que ele usou para tirar a própria vida. Esta não é apenas uma narrativa elíptica, é uma maneira excepcional de relatar um drama de forma menos dramática.” Em nosso fragmento, há também alguns travellings, mas, segundo fontes contemporâneas, a cena da fuga de Lena do orfanato com seu filho continha um exemplo singularmente belo da técnica de dolly shot de Sternberg [onde a câmera se move sobre trilhos em um carrinho]. Como escreveu o crítico norte-americano Dwight Macdonald em 1931, na revista The Miscellany, “a fuga de Lena...é expressa pela câmera que a segue como um olhar atento enquanto ela se desloca por um corredor, escondendo-se atrás de canos de água e se encolhendo em cantos escuros”. No Japão, o filme foi, no geral, recebido de forma mais favorável do que em outros países. Por exemplo, o crítico Chiyota Shimizu declarou na revista Kinema Junpo, em 1929, que “o ritmo rápido, a direção pouco dramática, mas impressionante, dos atores, o uso formidável de títulos que, mesmo assim, não oprimem, e muitas outras características são prova do talento superior de Sternberg...Este é o primeiro bom filme que vi este ano”. Kisao Uchida afirmou na mesma publicação que “este se assemelha formalmente ao melodrama shinpa” e “Sternberg o tratou inteiramente como um filme de tendência”. [N. T.: “Shinpa” significa “nova escola” em japonês e se refere aqui a um gênero de teatro cujas peças são melodramas ambientados no presente, ao invés de no passado. O “filme de tendência”, ou keiko eiga, foi um termo usado no Japão para designar filmes com temáticas sociais progressistas feitos entre o final da década de 1920 e o início da década de 1930.] Uchida comparou O romance de Lena aos “filmes de tendência” que estavam se tornando populares no Japão na época e considerou o filme de Sternberg como a tragédia de uma mulher que se rebela contra as autoridades por preocupação maternal. Lena Smith é privada duas vezes de seu filho por alguma agência governamental. Na segunda vez, quando seu filho é convocado para a guerra, temos a sensação de que ele agora será tirado dela para sempre. Embora o tema da luta de uma mulher contra o establishment social não seja aparente em nosso fragmento, ainda podemos presumir que O romance de Lena foi um prenúncio do tipo de “filmes de mulheres” pelos quais Sternberg e Dietrich logo se tornariam famosos. Do ponto de vista do gênero popular japonês de hahamono [filmes sobre o sofrimento das matriarcas], o filme de Sternberg A vênus loira (Blonde Venus, 1932) seguiu claramente os passos de O romance de Lena. |
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