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“Sobre Anatahan” (de Fun in a Chinese Laundry)
O texto a seguir faz parte da autobiografia do cineasta Josef von Sternberg, Fun in a Chinese Laundry [Brincando numa lavanderia chinesa], que foi lançada em inglês em 1965 e que hoje se encontra esgotada. Agradecimentos vão ao Nicholas von Sternberg, filho do cineasta, pela sua permissão de postar a tradução para português da discussão no décimo capítulo do livro sobre a realização do filme Anatahan. Existem dois fatores menores igualmente decisivos no destino de um filme, um sendo os meios adequados de circulação e outro o momento em que a obra estreia. Estar à frente de seu tempo não é muito melhor do que estar atrás, e frequentemente é pior. Este fator, na minha opinião, é integralmente responsável pelo destino curioso de uma obra minha, realizada sob as condições mais ideais. Eu fui muito longe em busca dessas condições, pensei tê-las encontrado no Japão, e lá fiz meu melhor filme – e também o mais malsucedido. Ele é conhecido por diversos títulos: A saga de Anatahan, Febre sobre Anatahan e A única mulher na Terra. Para aqueles que desejam examinar a estrutura de um filme para além do visível, aqui segue uma análise superficial. Salvo em casos raríssimos, como o do meu primeiro filme, em que todos os elementos, inclusive a organização e o financiamento, estavam combinados no mesmo homem, é essencial ter associados simpatizantes. Dois homens talentosos estiveram ao meu lado durante essa empreitada, ambos japoneses e ambos tão quanto desejável inteligentemente úteis. Um deles havia se formado em Princeton [Yoshio Osawa], o outro, educado nas universidades de Pequim e Heidelberg [Nagamasa Kawakita], ambos experientes no cinema e bem-sucedidos em outras áreas. O Japão, sua arte e cultura não eram estranhos para mim, e os japoneses conheciam tão extensamente minha obra que seria difícil achar alguém que não se impressionasse com isso. Diretores japoneses reconheciam abertamente a minha influência, o Príncipe Takamatsu, irmão do imperador, esteve presente em uma das minhas palestras, e nada foi deixado de lado para que eu me sentisse em casa, e para o conforto e alegria de minha esposa e dois filhos pequenos. Apesar da história em que se baseou o filme ter sido escolhida por mim antes da minha chegada, foi aprovada por todos que compartilharam minhas responsabilidades. Sua origem se deve a um acontecimento real ocorrido na selva de uma ilha. Um punhado de soldados japoneses naufragou em uma ilha deserta, habitada apenas por um japonês e sua bela esposa. Eles se recusaram a se render por sete anos após o término da guerra, incapazes de acreditar que seu país, tendo invadido todo o Pacífico, poderia ter sido derrotado. Eu mergulhei no assunto, não apenas tendo discutido extensamente com um dos sobreviventes que escreveu um livro com sua versão do desastre, mas também lendo inúmeras matérias de jornal publicadas na época, inclusive estudos psiquiátricos de todos os sobreviventes. Durante as primeiras semanas, enquanto eu trabalhava em minha versão, rumores de protesto chegaram aos meus ouvidos de que poucos japoneses gostavam da ideia de um estrangeiro explorar um infame episódio de sua história nacional. O Teatro Kabuki desfila pouco mais do que enredos de luxúria, maldade, fúria e paixões turbulentas, apresentadas com ornamentos de pompa tradicional e mimetismo por meio de trajes e máscaras extremamente estilizados. Ele é atento a um período do passado do Japão. Minha história, por outro lado, não tratava do passado distante, mas de um evento que havia acabado de acontecer; além disso, eu planejei retratar os japoneses exatamente como eram, não como se imaginavam ser, e busquei mostrar que eles não eram diferentes de qualquer outra raça de pessoas, por mais que desejassem ser considerados a parte do resto da humanidade. Apesar da natureza da história ser aparentemente sórdida por mostrar como ocorreu a desintegração da disciplina, acelerada pela presença de uma mulher atraente na ilha, eu escolhi essa série de eventos facilmente compreensíveis para levar a diante um experimento difícil de entender sobre psicologia de massas, para alertar a todos nós (simplificando) sobre a necessidade de reinvestigar nossas emoções e confiabilidade de nosso próprio controle sob condições desfavoráveis. Em trabalhos anteriores, eu tratei dessas questões de forma suave, ainda que isso tenha evocado uma reação surpreendente. Eu cito a fala do professor de cinema Lewis Jacobs, em seu livro The Rise of the American Film (1939): “Composto por efeitos pictóricos arrebatadores, salpicado de obscenidades e símbolos sugestivos, esses filmes traçam o declínio gradual de um talento...Eles são tramas tonais, fabricações bidimensionais que valem apenas por seus detalhes”. Em um livro recente ele se tornou ainda mais perspicaz e erudito. Ao discutir sobre meu trabalho ele escreve: “A coisa toda me lembrou o contorcionamento galvânico de um cadáver”. No fim das contas, eu deveria ter ouvido os gritos, ao invés de ter tentado fazer com que aqueles que gritam ouvissem. É provável que seja um erro assumir que seres humanos pagarão para ver seus próprios erros, ao invés dos erros dos outros. Na verdade, eu deveria ter me lembrado do destino de Frínico, que fez uma peça sobre a captura da cidade de Íon pelos persas. Chamava-se A tomada de Mileto (492 a.C.), e levou a plateia grega às lágrimas, mas a peça foi banida e o autor multado em mil dracmas por ousar escrever sobre uma tragédia recente. Eu fui muito mais cauteloso ao escolher os atores. A única mulher foi tirada do coro de musicais, após todas as gueixas de Tóquio terem desfilado para mim. Há quinze anos, um barco cheio delas foi selecionado para descer o rio Sumida comigo, e até esse apareceu novamente; nenhuma gueixa foi considerada velha ou jovem demais. Três veteranos do teatro kabuki foram acrescentados, e o resto dos homens eu tirei de escolas de dança, com exceção de um que foi encontrado em um restaurante. Como nenhum dos escolhidos estavam familiarizados com o tipo de interpretação necessária, foi organizado para eles estarem presentes durante a construção do roteiro, para que soubessem o que fariam e porque o fariam. Eu não falava japonês, e apenas meus intérpretes falavam inglês, com isso, havia uma boa vantagem de ter todos presentes enquanto os detalhes da história estavam sendo criados, pois além de seus méritos óbvios, a necessidade de longas explicações seria evitada. No entanto, a experiência acabou se revelando como uma escola de semântica, e não de atuação. A língua japonesa parece ser uma língua parentética e pouco concisa. Com algumas exceções, cada palavra falada tem muitas conotações, e um fluxo interminável de explicações envolve cada palavra para esclarecer seu significado. Dois intérpretes foram precisos: um para traduzir para o japonês o que eu havia dito e o outro para traduzir de volta para o inglês o que o primeiro tradutor estava dizendo, para que eu pudesse verificar se meu significado havia sido transmitido corretamente. Embora a linguagem nem sempre seja a melhor maneira de comunicar uma ideia, seu uso não deve ser ignorado completamente. Mas, para garantir que minhas ideias estivessem sendo transmitidas corretamente, contratei um artista plástico para desenhar imagens de cada cena do filme à medida que avançávamos. Também fiz um mapeamento dos envolvimentos emocionais de cada personagem, para que todos os atores pudessem ver claramente o tipo de emoção necessária em cada momento e o grau em que ela deveria ser usada. Estávamos lidando com ideias complexas e não com comunicação primitiva, que, em si, já parecia complicada. Se alguém pedisse cerveja, a menos que estivesse em uma taverna, presumia-se que podia estar falando de um animal que engolia pesadelos. Ao pedir para alguém se aproximar, era interpretado como um adeus. A palavra para “avestruz” era a mesma que para “hérnia”: tanto kuchi quanto ana significavam um buraco, mas ana também era uma exclamação de alegria ou desgosto, enquanto kuchi podia significar a boca ou uma porta, algo em decomposição ou (ao adicionar um som) uma cobra venenosa. Se alguém apontasse para designar um objeto, o dedo era inspecionado. “Não” podia significar “sim”. Não se podia elogiar um prato pedindo mais, pois o anfitrião poderia sentir que não havia dado comida o suficiente ao convidado. Em suma, havia muita coisa para fazer com que um estrangeiro tomasse cuidado. Como esta não era minha primeira visita ao Japão, nem meu primeiro contato com os sensíveis japoneses, eu estava atento à maioria dos problemas que poderia encontrar. Algumas das peculiaridades do povo japonês eu havia absorvido da maneira mais difícil, embora eu devesse usar a palavra “hábitos” em vez de “peculiaridades”, caso contrário, presumir-se-ia que nossos hábitos não são peculiares aos outros. Certa vez, caminhei por uma rua em Osaka, vestido com um yukata [quimono de verão] como todo mundo naquela noite sufocante, e me vi no centro de olhares zombeteiros e risos. Virei-me para meus companheiros, que estavam vestidos com o mesmo tipo de roupa, e pedi que me explicassem por que eu estava provocando o ridículo geral. Seria porque um estrangeiro não tinha o direito de se vestir como todos os outros? Não era esse o motivo, me disseram – eu havia chamado a atenção porque usava minhas roupas como se eu estivesse me preparando para deitar em um caixão, pois o lado direito do meu yukata estava dobrado sobre o esquerdo, o que só é feito quando se enterra alguém. Eu estava sempre alerto quando meus colegas de trabalho estavam trajados com suas habituais roupas japonesas, mas quando se vestiam como se pertencessem à nossa cultura, minha mente nem sempre estava em sintonia com a deles. Dinheiro raramente era manuseado, exceto em um envelope, e embora, até onde eu pudesse descobrir, ninguém se opusesse a recebê-lo, a grana era considerada um pouco impura – não no sentido de ser suja, mas porque prejudicava uma transação por um procedimento antiético. Nenhuma troca informal ocorria ao contratar os serviços de um ator. Em certa ocasião, a seleção de um dos atores de kabuki envolveu uma cerimônia e tanto. Acompanhado pelos tradutores e meu gerente de produção, que era graduado na Escola da Humildade, visitei o ator, que havia sido formalmente informado da possibilidade de nos conferir uma honra ao permitir que sua pessoa fosse usada em um empreendimento tão baixo quanto a realização de um filme. Antes de entrar, nossos sapatos foram descartados e, em seguida, meu gerente jogou seu corpo no chão de cabeça pra frente, quase colidindo com a do ator, que havia feito o mesmo. De bunda para cima, com os rostos estendidos no tatami entre as mãos abertas, os dois permaneceram em prostração abjeta por dois ou três minutos, sem nenhum deles ousando se mover ou olhar para cima até que o outro fizesse um sinal misterioso e imperceptível para mim. Em seguida, o chá foi preparado e servido como uma preciosa libação e, até onde pude apurar, o restante do dia foi consumido evitando qualquer discussão que pudesse levar ao porquê da nossa visita. Antes de sair, insisti com meus assistentes para que fossem direto ao ponto, e então o propósito da visita foi abordado da maneira mais indireta possível, o que fez o ator prender a respiração e encarar a possibilidade do trabalho com uma apreensão que fez parecer muito improvável que um horror tão indizível pudesse ser contemplado de forma séria. Nenhum valor foi mencionado – a questão da compensação seria acertada posteriormente na forma de um presente em dinheiro vivo, e o destinatário então gentilmente consentiu em emprestar sua presença como um presente em troca. Até o último minuto, nada indicou que a transação seria concluída. Em pouco tempo, um grupo de cerca de setenta japoneses, engajados de maneira semelhante, seguiu meus passos, cada um deles determinado a praticar haraquiri por mim, se fosse preciso. Pior ainda, eles não apenas me consideravam seu mentor, mas também seu pai, e me favoreceram com toda a devoção, responsabilidade e hostilidade que essa distinção acarreta. A família da garota que eu havia selecionado para o papel da sedutora da selva me tornou pessoalmente responsável por sua castidade, aparentemente tendo sobrevivido ao coro e a um período de trabalho anterior em uma fábrica de chocolate. Um bom e velho veterano do kabuki, com o dobro da minha idade, só foi entregue a mim depois que eu prometi à sua esposa e filha (enquanto elas choravam) que ele usaria suas roupas íntimas pesadas o tempo todo para evitar um resfriado. Embora ele também me tenha adotado como pai, ele escorregou uma ou duas vezes em seu relacionamento comigo ao confessar que sua única razão para não se divorciar da esposa e me substituir era que eu não era mulher. O motorista que me foi designado declarou que seria meu para o resto da vida, transmitindo-me assim que eu precisava providenciar um emprego permanente para ele antes de deixar o Japão. Durante as filmagens, sua esposa teve um filho e, embora isso não pudesse ser atribuído a nenhum esforço meu, ele me agradeceu imensamente. Metade da minha equipe havia sido treinada como kamikazes e a outra metade como guerrilheiros nas Filipinas, embora isso não os tivesse preparado para a tarefa árdua de trabalhar comigo. Como não havia espaço de estúdio disponível, nos deparamos com o problema de transformar um salão de exposições em Quioto em um set adequado. Tive que projetar unidades de luz, projetores de fundo especiais, suportes de câmera, bem como unidades de aquecimento para fornecer calor para as condições tropicais, além de máquinas de vento e chuva. Raízes gigantes de criptoméria foram içadas e viradas de cabeça para baixo para formar uma selva que só existia na minha imaginação. Folhas e palmeiras foram adicionadas e cabanas sobre palafitas foram erguidas, e tudo isso pulverizado com tinta alumínio. Nada se mostrou simples, praticamente tudo teve que ser construído do zero. Até mesmo o sistema de som e o maquinário de filmagem tiveram que ser alterados de suas funções originais. Os atores foram postos à obra para fazer seus próprios figurinos. Um brinquedo comprado em uma loja foi utilizado para representar a aeronave mortífera que afunda um barco, que em si, foi desenhado com caneta e tinta em um pequeno pedaço de papel e depois ampliado por um processo nunca antes realizado. A ilha de Anatahan também era apenas um desenho, assim como as nuvens, as colinas distantes e os navios de guerra inimigos. Foi até necessário trazer cocos das Filipinas, já que não havia um único coco que podia ser encontrado no Japão. Nada desse improviso e fantasia é visível no filme, e também estão ocultas as muitas horas de trabalho e a devoção daqueles que ajudaram a construir a última fortaleza do Japão Imperial e a mostrar o que acontece com a humanidade quando ela retorna ao nível do homem das cavernas. Os homens que retratei em Anatahan não eram os japoneses de um folclore falsificado, mas seres humanos comuns que são sujeitos às tensões comuns sem as quais não há vida. As poucas pessoas que assistiram ao filme sentiram que elas, e não os eventos sórdidos na tela, estavam sendo inspecionadas. É curioso notar que todos que cometem um erro o justificam ao recorrer para suas emoções, ao invés da sua capacidade de raciocínio. Eu também usei minhas emoções ao invés da razão ao escolher fazer este filme. No Japão, a recepção desfavorável para Anatahan foi praticamente unânime. Os livros didáticos que mencionam essa tentativa de adicionar uma quarta dimensão ao meu trabalho afirmam que eu havia perdido minha habilidade como cineasta décadas atrás, aparentemente antes mesmo de adquiri-la. Nos Estados Unidos, o filme foi exibido em apenas uma dúzia de cinemas e com pouco retorno. Na Inglaterra, minha narração foi substituída por uma narração que parecia ser de um estudante japonês analfabeto, e embora o filme tenha sido deturpado e todo o seu significado alterado, meu nome foi mantido para que eu pudesse receber o crédito. Na maioria dos outros países, ele nem foi exibido. Em Paris, porém, foi bem recebido. Portanto, antes de concluir o meu relato, pedirei a um crítico francês que viu Anatahan para dizer algumas palavras a seu favor. Segue um trecho de um artigo escrito por Philippe Demonsablon em Cahiers du cinéma em abril de 1956:
…uma obra de arte madura, na qual as demandas do diretor se tornam ainda mais exigentes e onde sua intenção se expressa em toda a sua complexidade. Pois este filme tem duas facetas intimamente interligadas: é, antes de tudo, um objeto cujo poder de fascínio justificaria, por si só, uma admiração irrestrita; em segundo lugar, é uma expressão, consciente ao extremo, do homem que criou aquele objeto...Com base em eventos reais do nosso tempo, ele concebe uma obra de arte que é intencionalmente não realista...como um exemplo marcante, note-se que quando um homem é morto por dois tiros de revólver em suas costas nuas, os tiros não ressoam, mas são incorporados à trilha sonora...Há uma qualidade desafiadora presente no filme, um certo desejo aristocrático de desagradar: mas são apenas os tolos que o filme desagrada...Tendo acabado com a verossimilhança servil, o autor ganhou para si a maior liberdade possível para expressar uma verdade poética...Ele escreveu a narração e é sua própria voz que fala por uma hora e meia sobre as imagens, não para esclarecer os diálogos, mas para comentar as ações, introduzindo assim uma mudança entre o espetáculo e a reflexão sobre ele...É impossível atingir ou manter neste filme o tipo de distanciamento assumido pelos moralistas, e que muitas vezes não passa de indiferença. As imagens de paixão que aparecem nesta tela negam essa indiferença, e o espectador, dividido em duas direções opostas pela imagem e pelo comentário, não pode deixar de se perturbar com essa dualidade...Tenho plena consciência de que algumas pessoas que veem a produção artística como um meio de entretenimento protestarão veementemente contra a minha intenção de, além da obra de arte em si, me aprofundar na natureza do homem que a criou. Mas não é o homem um fenômeno suficientemente raro e surpreendente para justificar nosso interesse por todos os aspetos de sua atividade? E, entre esses aspetos, a criação artística me parece um dos empreendimentos mais sérios e ousados...A tela é bastante dilacerada e inflamada pelas fulgurações que lhe são lançadas, vindas do fundo de seu coração...É assim que vejo este filme, a realização daquela obra de arte, considerada impossível de realizar, e que Edgar Allan Poe propôs chamar de My Heart Laid Bare [Meu coração desnudado, uma autobiografia que Poe sonhou em escrever].
Não sei qual será o meu próximo filme, nem se farei outro. Não tenho como prever o futuro.
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