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Programa 1 (2 filmes, 95min): “Anatahan”

Crayon Angel [Anjo de giz de cera]
Keiichi Tanaami | Japão | 1975, 3’, 16 mm para DCP (NANZUKA)
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Anatahan
Josef von Sternberg | Japão | 1953/1958, 92’, 35 mm para DCP restaurado (Kino Lorber)
 
Em 1951, um grupo de soldados pertencente à Marinha Real Japonesa foi resgatado da ilha de Anatahan, no arquipélago das Marianas. Eles estavam entre os últimos militares japoneses a se entregarem após a rendição do Japão aos Estados Unidos, seis anos após o término da Segunda Guerra Mundial e a queda do Japão como um império. O resgate ocorreu com a ajuda de Kazuko Higa, a única mulher a conviver na ilha com os soldados, que voltaram para seu país como heróis. Porém, logo em seguida, a mídia sensacionalista começou a reportar histórias sobre o envolvimento amoroso de Higa com vários dos soldados, que resultou em rivalidades e morte de alguns deles. O cineasta austro-americano Josef von Sternberg – conhecido mundialmente por suas colaborações com a atriz Marlene Dietrich na década de 1930, porém efetivamente afastado de Hollywood na década de 1950 – leu sobre o ocorrido no New York Times e, tendo há muitos anos interesse em realizar um filme no Japão, de imediato entrou em contato com o produtor de cinema Nagamasa Kawakita com a proposta de filmar a história. Eles tomaram como fonte principal Anatahan (1952), de Michiro Maruyama, o livro de memórias de um dos sobreviventes.
 
“Não era a falta de comida, água ou medicamentos... Não era a selva venenosa que nos rodeava... Como adivinhar que tínhamos trazido nosso inimigo conosco, em nosso próprio corpo, e que nos atacaria sem que percebêssemos.” O narrador do filme Anatahan (nunca nomeado) assim declara logo que os homens chegam à ilha. A história do filme é a do conflito em torno de Higa, ou Keiko, dando a Anatahan um tom de thriller psicológico com repercussões filosóficas sobre a natureza humana em condições selvagens.
 
Sternberg teve controle integral da produção, que envolveu, entre outros, a criação da densa floresta da ilha (feita em um estúdio em Quioto) e a seleção de atores – todos desconhecidos ou estreantes, como a atriz Akemi Negishi (futura colaboradora de Akira Kurosawa), alguns do teatro kabuki e até um homem que o cineasta conheceu em um restaurante e que faria o papel do sargento líder do grupo. A narração é enunciada em inglês pelo próprio Sternberg, enquanto os atores encenam o drama em japonês sem legendas.
 
Anatahan estreou no Festival Internacional de Cinema de Veneza, e, anos depois, o cineasta declarou que foi o melhor entre seus filmes. Porém, a sua recepção inicial foi muito insípida, tanto nos Estados Unidos quanto no Japão. Em 1958, Sternberg reeditou Anatahan para incluir algumas cenas de nudez da personagem Keiko (algo impossível em 1953), mas essa nova versão foi lançada apenas em 1976, após a morte do diretor. A partir daí, o filme começou a ganhar a reputação merecida, como uma das principais obras de Sternberg. Ele foi restaurado em 2K em 2017 pela distribuidora norte-americana Kino Lorber a partir dos negativos originais da versão de 1958 (localizados na Biblioteca de Congresso, dos Estados Unidos), mais uma cópia em 35 mm da versão de 1953 localizada na Cinemateca Francesa.
 
O programa da versão restaurada de Anatahan no IMS Paulista também conta com o curta de animação de Keichi Tanaami Crayon Angel, a primeira incursão do cineasta experimental japonês nas suas memórias de infância da Segunda Guerra Mundial. O título se refere às imagens de anjos feitas com giz de cera por crianças, que Tanaami lembrou de ter visto no jornal durante os anos de guerra. No filme, imagens de arquivo de bombardeios aéreos e de fotos de família são intercaladas por animações, como a cabeça de uma mulher à beira da morte, um galo com a crista em chamas e comediantes do pré-guerra. A sonoridade minimalista cria uma tensão particular ao misturar o som da sirene que anuncia o bombardeio, uma música do Led Zeppelin e a batida do coração.
 

 


 
Programa 2 (10 filmes, 70min): “Curtas de Keiichi Tanaami”

O romance de Lena (fragmento)

The Case of Lena Smith (fragment)
Josef von Sternberg | EUA | 1929, 5’, 35 mm para DCP restaurado (Museu de Cinema da Áustria)
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SHE [ELA]
Keiichi Tanaami | Japão | 1971, 9’, 16 mm para DCP (NANZUKA)
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Sweet Friday [Doce sexta-feira]
Keiichi Tanaami | Japão | 1975, 3’, 16 mm para DCP (NANZUKA)
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Good-By Elvis and USA [Adeus Elvis e EUA]
Keiichi Tanaami | Japão | 1971, 7’, 16 mm para DCP (NANZUKA)
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Artificial Paradise [Paraíso artificial]
Keiichi Tanaami | Japão | 1975, 14’, 16 mm para DCP (NANZUKA)
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Breathing of the Wind (animation correspondence) [Respiração do vento (correspondência por animação)]
Keiichi Tanaami + Nobuhiro Aihara | Japão | 2001, 3’, 16 mm para DCP (NANZUKA)
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Memories Hidden in Darkness – Dreams of Various Shades [Memórias escondidas na escuridão – Sonhos de vários tons]
Keiichi Tanaami | Japão | 2000, 4’, 16 mm para DCP (NANZUKA)
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A Gaze in Summer – 1942 [Um olhar no verão – 1942]
Keiichi Tanaami | Japão | 2002, 4’, 16 mm para DCP (NANZUKA)
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Shunga
Keiichi Tanaami | Japão | 2009, 5’, 16 mm para DCP (NANZUKA)
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The Laughing Spider [A aranha que ri]
Keiichi Tanaami | Japão | 2016, 8’, HD para DCP (NANZUKA)
 
O programa de nove curtas-metragens de Keichi Tanaami compreende animações e filmes experimentais realizados ao longo dos mais de 50 anos de atividade do artista japonês recém-falecido. O programa será precedido por uma apresentação em vídeo feita pelo pesquisador nipo-britânico Julian Ross, que trabalhou com o cinema de Tanaami em diversas ocasiões.
 
Tanaami tomou o cinema norte-americano como uma forte referência, tanto as manifestações hollywoodianas e pop quanto o Novo Cinema Americano, com suas obras de vanguarda e cinema expandido. Essa primeira inspiração pode ser vista nos curtas de animação humorísticos que fez nos anos 1970 para o programa de televisão adulto japonês 11 PM. O filme Good-By Elvis and USA cria uma imagem anti-heroica de Elvis Presley, misturando desenhos e recortes de revistas com trechos da música “Love Me Tender”, que são alterados com redução de velocidade e tocados de trás para a frente. Já em Sweet Friday, Tanaami retrata de forma bem-humorada sua rotina em seu dia da semana favorito, misturando o cotidiano com toques de fantasia.
 
A influência do cinema experimental norte-americano pode ser vista nas experiências estruturalistas de Tanaami com cor, luz, superimposições e repetições de imagens. Em SHE, uma mulher (Misao Matsuhashi) nua corre em uma praia deserta, ora com a câmera nas mãos, ora diante da câmera, enquanto a imagem se transforma com uma variedade psicodélica de cores. Em Artificial Paradise, Tanaami trabalha com fotos de paisagens (a partir de um único cartão-postal) que são sobrepostas, rotacionadas, aproximadas e distanciadas, separadas por camadas de cores.
 
Após a década de 1970, Tanaami passou quase 20 anos sem realizar um filme. O intervalo foi encerrado graças à sua parceria com o animador Nobuhiro Aihara (1944-2011), um amigo e colega de trabalho na faculdade de cinema da Universidade de Artes de Quioto. O método de colaboração deles começou com uma correspondência por desenhos. Aihara fazia um desenho e deixava na mesa de Tanaami, que respondia com outro desenho, e eles continuavam até a dinâmica atingir um nível satisfatório para os desenhos serem animados. Dessa parceria, serão apresentadas as correspondências mais literais Breathing of the Wind (animation correspondence) e Memories Hidden in Darkness – Dreams of Various Shades. O filme A Gaze in Summer – 1942 retrata as lembranças de guerra da infância de Tanaami, de forma ao mesmo tempo lírica e sinistra. A aquarelística Shunga, com diversas cenas de casais no coito, foi inspirada em um estilo de arte erótica japonesa que se tornou popular no período Edo (1603-1867), uma época apreciada por Tanaami.
 
The Laughing Spider, cujas imagens são também inspiradas na iconografia Edo (além das aranhas do pintor francês Odilon Redon), é uma das últimas animações realizadas por Tanaami. O vídeo (parte de uma série derradeira de trabalhos digitais) segue a estética da sua última década de trabalho, na qual Tanaami recriou imagens e motivos anteriores para a produção de instalações, gravuras, parcerias com marcas de roupa, como Comme des Garçons, pranchas de surf e a boneca Barbie. No caso de The Laughing Spider, o artista explora a vulgarização da sociedade japonesa do pós-guerra, levando suas memórias de infância ao extremo da violência que muitas crianças japonesas sofreram.
 
O programa ainda conta com o único fragmento sobrevivente do último filme silencioso dirigido por Josef von Sternberg, O romance de Lena, que foi inspirado nas memórias de infância do cineasta austro-americano, quando viveu em Viena entre 1894 e 1908 e encontrou o que ele chamou em sua autobiografia de “um paraíso infantil... que nunca mais existiu”. O filme, que se passa um pouco antes da Primeira Guerra Mundial, conta a história de uma camponesa que se envolve com um soldado do Exército Imperial-Real Austríaco e tem um filho ilegítimo dele. Lena Smith (interpretada por Esther Ralston) luta para ficar com seu filho, mas, após conseguir resgatá-lo das mãos do Estado, perde-o pela segunda vez, quando ele é escalado para lutar na guerra. O fragmento em 35 mm de O romance de Lena foi encontrado pelo pesquisador japonês Hiroshi Komatsu em 2003, durante uma viagem à China, e digitalizado pelo Museu de Cinema da Áustria, em parceria com a Universidade de Waseda.
 

Minibio do convidado:
Julian Ross é diretor de Programação e Distribuição de Filmes no Eye Filmmuseum, em Amsterdã. Em 2024, foi coprogramador do MoMA Doc Fortnight (com Sophie Cavoulacos), coprogramador do 69º Seminário Flaherty no Thai Film Archive (com May Adadol Ingawanij), cocurador da exposição coletiva Community of Images na Philadelphia Art Alliance (com Ann-Adachi Tasch e Go Hirasawa), membro do comitê de seleção do Villa Medici Film Festival, coprogramador da mostra de filmes que acompanhou a exposição Underground: American Avant-Garde Film in the 1960s, no Eye Filmmuseum (com Anna Abrahams) e curador do programa de filmes Engawa no Porto/Post/Doc e no Centro de Arte Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian, em Portugal. Mais informações sobre seu trabalho podem ser encontradas no site rossjulian.com.
 
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