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Vinte dias sem guerra
Dvadtsat dney bez Voyny
Aleksey German
Ex-URSS, 1976, 97 min., 35mm para DCP

 
Major Lopatin (Yuriy Nikulin), um escritor e soldado de meia idade, retorna para sua cidade natal no Uzbequistão, após receber uma licença de 20 dias, durante a Batalha de Estalingrado, em 1942. Além de trazer consigo os pertences de um soldado morto para serem entregues à sua família, Lopatin assessora uma produção cinematográfica sobre seus escritos de guerra e diverge do diretor com relação à imprecisão histórica e ao retrato irrealista de heroísmo. Ele também encoraja trabalhadores de uma fábrica, que não passam de crianças, a fazer horas extras em prol dos soldados, discute com um grupo teatral dizendo que um soldado não dá a vida pela pátria, mas luta por sua própria sobrevivência e encontra tempo para um romance com uma antiga colega e funcionaria do teatro (Lyudmila Gurchenko), conferindo à breve jornada uma certa dimensão doméstica e de normalidade.
 
Baseado em uma história do correspondente de guerra, escritor e poeta Konstantin Simonov, o segundo longa-metragem autoral do cineasta russo Aleksey German foi filmado em preto e branco e carrega um tom melancólico com ocasionais rupturas violentas. Assim como outros filmes de German, Vinte dias sem guerra foi censurado e lançado apenas cinco anos após sua conclusão.
 
IMS Rio de Janeiro 16/11 às 16h.
Reprise 25/11 às 16h.
 
IMS Paulista 29/11 às 18h45.
Reprise 02/12 às 16h.
 

 
"Uma luta teimosa pela verdade histórica: Entrevista com Aleksey German"
 
A entrevista com Aleksey German a seguir foi conduzida em 1988 pelo crítico de cinema Ronald Holloway, fundador do jornal Kino, morto em 2009. Trechos foram traduzidos de inglês para português para essa ocasião. A entrevista completa pode ser lida em inglês no site Kinoeye: http://www.kinoeye.org/04/04/holloway04.php . Agradecemos a Andrew James Horton, editor da Kinoeye, por autorizar o uso de material do site.
 
Aleksey German: Quem sou eu? Por profissão, sou um diretor de teatro. Eu me formei em artes dramáticas em Irkutsk. Eu queria ser médico, mas meu pai me convenceu a ser diretor. Meu pai, Yury German, era um escritor soviético famoso. Acho que era um bom escritor. Ele não desenvolveu ou mostrou seu talento completamente. Ele escreveu uma história muito boa sobre Lapshin, na qual, pela primeira vez, nos anos de 1930, a vida de um único indivíduo foi discutida. Konstantin Simonov me disse isso depois de meu pai já ter morrido. Ele disse que quando leu pensou que a história havia sido escrita por um homem velho, mas foi escrita por um jovem de 25 anos de idade. Algumas de suas obras foram encenadas por Meyerhold quando ele tinha 22 ou 23 anos. Ele escreveu alguns livros maravilhosos, mas sofreu muito durante a vida.
 
Por que ele sofreu?
 
German:
Primeiro, ele era filho de um oficial e todos os seus predecessores eram de origem errada. Seu pai e seu avô eram generais do czar, isso significa que sua vida foi realmente muito difícil. E devo dizer que ele era absolutamente soviético, inteiramente dedicado ao Poder Soviético e acreditava que nada melhor havia sido inventado. Ele se interessou por Stalin durante um certo período.
 
Depois da guerra ele perdeu as esperanças rapidamente e no final, em 1948, odiava Stalin. Eu me lembro quando garoto corri para dentro do quarto para dizer que Stalin havia morrido, meu pai estava despido naquele momento. Ele repetiu inúmeras vezes que Stalin estava morto e que não iria piorar. Todo o país estava chorando ao mesmo tempo. Eu me lembro muito bem dessa imagem da minha infância.
 
Seu pai alguma vez conheceu Stalin?
 
German:
Meu pai conheceu Stalin. Eles jantaram juntos duas vezes. Mas ele não visitou Stalin em sua casa. Ele visitou Gorky ao mesmo tempo em que Stalin visitava Gorky. Meu pai era muito famoso antes da guerra, ele recebeu um grande prêmio, Prêmio Stalin, por seu roteiro de Pirogov. Percebe, toda a história é muito complicada.
 
Agora quero repetir que meu avô era um oficial do czar e minha avó era enfermeira do exército. Ela esteve no front. E do lado materno, eu tive alguns parentes que eram comerciantes. Eram judeus. Eu sou de nacionalidade russa mas com muito sangue judeu. E devo dizer que me orgulho de ter sangue judeu, apesar de soar estupido. Eu tenho orgulho do meu sangue russo porque eu amo a Rússia e os russos, mas me orgulho de ter uma conexão com um povo antigo e poderoso - os judeus.
 
Seu filme Proverka na dorogakh (Provação nas estradas, 1971) foi banido. Depois do escândalo da proibição, como você pôde receber permissão oficial para filmar novamente?
 
German:
Eu devo um profundo agradecimento a Konstantin Simonov. Um dia, ele telefonou e disse que queria trabalhar com um jovem cineasta, principalmente porque trabalhar com diretores veteranos estava ficando cada vez mais difícil. Ele tinha visto meu primeiro filme Provação nas estradas que havia sido censurado, baseado nas histórias de guerra de meu pai, que ele conhecia dos anos da guerra. O filme o impressionou muito, então ele se ofereceu para escrever algo para mim.
 
Simonov me deu para ler uma cópia de sua novela Anotações de Lopatin (1965). Ainda não havia sido publicada. Eu gostei, em particular, da história de um aviador. Havia o chiado do vagão de trem, o tema do trem cruzando a Rússia, as velas no corredor e coisas do gênero. Eu achei que podia construir todo o resto em torno desse tema. Então mandei um telegrama para Simonov: "Eu quero filmá-lo". Eu confiei nele e ele em mim. Afinal de contas, ele publicou na revista Isvestiya uma crítica elogiosa sobre meu filme de estreia bem quando eu tinha perdido as esperanças.
 
Quando eu fui vê-lo, ele me falou que tinha tirado a história do aviador de Anotações de Lopatin. Eu não entendi porque. Ele disse que essa história em particular não era exatamente verdade, mesmo que todo o resto tenha acontecido como foi descrito nas anotações - em outras palavras, ele escreveu a história "logo de cara". Quando ele retornava do front ditava na mesma noite suas anotações a um estenografo. Mas ele também se certificou de manter todas essas anotações.
 
Se a história do aviador estava fora, o que ficou no lugar?
 
German:
Konstantin Simonov nos deu - para mim e para minha esposa Svetlana [Karmalita], minha roteirista - suas anotações da guerra. Nós fomos autorizados a usar qualquer material que fosse adequado para o filme. Portanto Vinte dias sem guerra não é realmente baseado em Anotações de Lopatin - como você encontrará nos créditos - , mas em anotações de Simonov.
 
Que tipo de material você buscava?
 
German:
Primeiro, um material que tratasse dos sentimentos humanos, depois, como as pessoas reagiam à guerra. Nesse sentido, eu procurei projetar minhas próprias experiências de criança, minhas próprias lembranças da guerra.
 
Em resumo, é sobre descrever uma condição da alma?
 
German:
Sim, exatamente. Enquanto nós vasculhávamos o material, subitamente nos deparamos com o problema de um homem mais velho, uma história de amor. Ivan Bunin escreveu uma história durante sua imigração para Paris sobre um general da Guarda Branca que se apaixonou por uma mulher de meia idade, uma servente. Eu conversei com Simonov sobre essa história e ele disse que também gostava muito dela. Então a li novamente e isso me deu um impulso de inspiração.
 
Eu acredito que o amor de um homem mais maduro é uma experiência forte. O amor entre jovens nunca é muito interessante para mim porque, como disse meu pai uma vez, é o período do autoconhecimento. O amor de um homem mais velho e maduro é algo completamente diferente, mais precioso e genuíno. A deliberação foi muito importante para mim, me levou a escolher o ator certo para o papel principal de Lopatin...
 
…Yury Nikulin, um palhaço muito conhecido...
 
German:
Eu precisava para esse papel de uma pessoa que não fosse um militar. Também, Simonov mostra em Anotações de Lopatin que seu herói passa por uma certa evolução, independentemente de como uma pessoa envelhece durante a guerra. No começo, ele o caracteriza como alguém que age como um comerciante de lã da Mongólia - temperamental, estranho, míope. Ele usa botas barulhentas e possui um sorriso angustiado. Depois ele se lembra de uma insígnia da Primeira Guerra Mundial, se torna mais viril e até pega em uma arma. Esse processo foi muito interessante para mim e influenciou meu trabalho com Nikulin. Foi condicionado pelo ritmo em que o tema da guerra é integrado ao filme. Nós todos nos lembramos da atmosfera particular da guerra. Então eu tentei reconstruir a sonoridade, os rumores, o discurso de guerra, para montar algo como uma polifonia, ouvir o eco das vozes da guerra.
 
O que você quer dizer com uma "polifonia" da guerra?
 
German:
Eu considero que as pessoas vivem em um certo meio que é delineado pelo amor e pela vida dos protagonistas. Elas são marcadas de uma certa forma por esse meio. Então eu tinha um tipo de gravação específica na qual alguns fragmentos arbitrários de sentenças de outras pessoas são mais altas que as do protagonistas. O casal está falando de seus problemas emocionais e, ao mesmo tempo, outras pessoas passam e trocam palavras sobre isso ou aquilo.
 
Por uma questão de veracidade, eu procurei por pessoas que foram cegadas durante a guerra e portanto ainda podiam lembrar dos sons da guerra. Eu encontrei um homem que podia recitar poesias e cantar músicas como elas eram ouvidas durante a guerra. Você deve saber que as gravações das transmissões de radio não existem mais. Esse homem e sua esposa nos ajudaram muito. Ambos foram cegados durante um ataque de bomba, o que fez com que o aspecto acústico dos anos de guerra permanecessem bem preservados em suas memórias.
 
Isso soa como se você estivesse fazendo uma ficção-documentário...
 
German:
Uma orientação foi particularmente útil, eu identifiquei o filme mais à poesia do que à prosa. Ainda que eu não tenha qualquer talento poético, eu escrevia algumas impressões em verso livre e comunicava isso ao cinegrafista.
 
Você pode me dar um exemplo?
 
German:
Por exemplo, o episódio da orquestra feminina. Como isso aconteceu? Eu estava certo de que havia uma orquestra assim durante a guerra e que a tradição tinha sido continuada até os dias de hoje. E claro, eu achei uma em Leningrado. Claro, eu tinha que ter certeza de que as cenas correspondiam aos tempos e que o figurino estivesse de acordo com o período também. Eu não queria incomodar atores com essa exigência.
 
Então eu cheguei em uma cena na qual um bando de jovens oficiais estava sendo cerimoniosamente enviado para o front em uma estação de trem. Era apenas uma questão de escolher os tipos certos, pegar as faces certas de mulheres e homens, de saber como os espectadores devem ser vestidos, de garantir que todos os jovens recrutas possuíam o mesmo corte de cabelo - todos os elementos de uma composição antes da cena ser filmada. Antes de filmar, nós ensaiamos aquela cena. Os vestidos e maquiagens das mulheres na orquestra eram importantes para veracidade. Naquele tempo eu não tinha intenção de incluir esse segmento no filme, mas os resultados do ensaio foram muito emocionantes.
 
Pouco tempo depois, eu fui para Tashkent para filmar o encontro na fábrica. Eu descobri uma velha e decrépita oficina. Os figurantes foram vestidos para combinar com o período, mas o encontro pareceu de certa forma sem cor apesar da ambiência adequada e das fotos que usamos das crianças em pé diante das máquinas. Eu fui ao diretor de produção e implorei: "Por favor me traga a orquestra feminina de Leningrado. Sem elas estamos perdidos!" Os camaradas no Comitê Central do Uzbequistão ofereceram seu suporte também. A orquestra veio. Eu pedi às mulheres para tocarem na oficina vazia e encheu meus olhos de lágrimas. Eu sabia que aquela cena do encontro estava salva.
 
Imagine que eu tinha que encontrar um caminho para manter todos os 5 mil figurantes silenciosamente sem fazer um movimento. Nenhum grupo de figurantes, em qualquer lugar do mundo, poderia fazer isso de uma vez. E eu precisava de uma longa panorâmica pelos rostos das pessoas absortas nelas mesmas. Então pedi que lembrassem da guerra para homenagear aqueles que sacrificaram suas vidas - todas em vão. Então a orquestra tocou a melodia "Erga-se, Grande Nação" ["Vstavai, Strana Ogromnaya!"] e a multidão congelou em uma postura imponente. Nós fizemos um movimento panorâmico pela multidão diversas vezes e acabamos com algumas belas cenas da atmosfera de orgulho, dignidade, crença persistente em uma boa causa.
 
Você está preocupado com o atual crescimento do nacionalismo russo?
 
German:
Acho que algo que pode acabar com a perestroika, que pode acabar com todas as coisas boas que acontecem hoje é essa onda de nacionalismo que está invadindo o país nesse momento. Eu sou a favor de que os estonianos falem estoniano e que participem de sua própria cultura. Eu também sou a favor de que os estonianos tenham o estoniano como língua oficial. E que na Lituânia a língua oficial seja o lituano. Eu entendo que eles devem ter sua própria cultura. Eu também entendo que não devem haver muitos russos morando nesses lugares.
 
Mas eu também sou contra o fato de que em certas zonas a culpa é colocada no que mostra a realidade. De que os russos são acusados de todas as coisas ruins em alguns lugares. Quando você aponta o dedo para, por exemplo, os russos, quando você aponta o dedo para os armênios pelos problemas que ocorreram, em muitos casos não são os russos os culpados. Não deveriam ser obrigados a ter o que chamamos de zonas nacionais. Ou que o nacionalismo devesse ser o grito de guerra para muitas pessoas em um lugar. E o apelo nacional para o ódio é o resultado disso.
 
Isso sempre foi assim em nosso país. Sempre houve movimentos nacionalistas desse tipo. Essa rejeição das outras pessoas, outras culturas,culmina em surtos queentão são abafados novamente. Agora através da glasnost, da abertura e democracia, isso tudo vem à tona. Pior ainda, é permitido. E você pode ver também que esse tipo de ódio, ou esse tipo de sentimento nacionalista é apoiado, na voz do povo, por políticos, pelas pessoas no poder. É apoiado por burocratas, e funcionários burocráticos apoiam esse tipo de coisa. Também, o anti-semitismo está sendo apoiado, de certa forma.
 
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