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O Grande Bizarro
The Grand Bizarre
Jodie Mack | EUA | 2018, 60', 16 mm para DCP
 
Em sequência, uma fogueira, um horizonte de panos coloridos atrás do qual quebram ondas no mar e, sobre outras ondas, boiam trapos coloridos. Assim começa a jornada, malas repletas de malas, malas repletas de tecidos. Em vagões de trens, nas ruas, mais malas e mais tecidos. Mapas e globos, aviõezinhos de papel e ainda mais tecidos. O Grande Bizarro mostra um mundo brilhantemente colorido e dominado por fábricas, padrões e cores, que dançam na tela ao ritmo quebrado de uma batida pop inventada. Tudo se movimenta na imagem construída, figura e fundo. Tecidos são pássaros, tecidos são náufragos, tecidos são turistas e trabalhadores que saltam de malas, que são refletidos em espelhos de carros, táxis e bancas de vendas. As paisagens produzem um espaço artificial e esfuziante como um globo espelhado que reflete luz.
 
A renomada cineasta experimental Jodie Mack (que nasceu na Inglaterra em 1983 e radicou-se nos EUA) viajou por mais de 15 países com sua câmera Bolex 16 mm. Seu primeiro longa-metragem é uma jornada eletrizante - filmada quadro a quadro e protagonizada por panos coloridos cheios de padrões geométricos e florais - que explora a sociedade moderna e sua infinita capacidade de desperdício, em países como China, Grécia, Índia, Marrocos, México, Nova Zelândia, Polônia e Turquia. A trilha sonora criada pela cineasta também incorpora materiais achados, acompanhando as imagens com canções feitas a partir de sons captados in loco e remixes surpreendentes. Tudo é resto e reciclável, aí reside sua criatividade.
 
O Grande Bizarro estreou no Festival de Locarno em 2018, na mostra Signs of Life [Sinais de Vida], e desde então tem sido apresentado em diversos formatos, de película a videoinstalação.
 

 
"Ornamentos em massa"
 
A entrevista a seguir entre Jodie Mack e o cineasta e crítico Blake Williams foi originalmente publicada em inglês na revista Cinema Scope, em outono de 2018, e traduzida com o consentimento do autor. Entre os cineastas citados na conversa estão Nathaniel Dorsky e Jerome Hiler, dois grandes artesãos do cinema em 16 mm que residem em São Francisco.
 
Cinema Scope: O Grande Bizarro é um filme que, em muitos aspectos, desafia a categorização. Parte disso é porque ele tem um pouco de tudo: é um musical, um documentário etnográfico, uma animação. Você enxerga o filme como pertencente a alguma tradição ou algum gênero específico?
 
Jodie Mack: Com certeza minha inspiração vem dos musicais e do cinema clássico de Hollywood, mas, por não ter modelos a seguir, eu me senti realmente livre ao fazer este filme. Eu gostaria que alguém tivesse me dito: "Ah, existe esse documentário de música pop sobre mão-de-obra que é realmente ótimo e você deveria assistir!". Mas tive que escolher entre diferentes coisas. Há muita influência do cinema experimental, inclusive de pessoas que normalmente não são comparadas a mim ou ao meu trabalho. Por exemplo, Peter Hutton.
 
CS: Pensei em At Sea (2007) quando você mostra os contêineres coloridos e empilhados.
 
JM: Sim, esse filme, e a idéia de planos animados de longa duração. Eu não conseguia filmar mais do que 30 segundos porque essa é a duração de um rolo de filme na câmera Bolex. Enquanto alguns planos atingem os 30 segundos, na maioria das vezes há uma ultra-compressão de tempo com a ilusão de uma longa tomada, onde você pode ver a luz passando super-rápido. Há a noção de "cinema duracional" de um cara como Hutton, embora eu esteja trabalhando no extremo oposto de nossos irmãos e irmãs de longas tomadas.
 
Mas você me perguntou sobre gênero, então deixe-me voltar a isso por um segundo. O filme dialoga com anúncios de viagens, videoclipes, entre outras coisas. Dialoga com todos esses idiomas, mas também brinca com a ideia do celular. Dos quadros da película aos padrões têxteis, existem todas essas analogias entre os tecidos e nossa fisiologia, entre os tecidos e nossos modos de produção. Este filme, e também meu filme Hoarders Without Borders 1.0 (2018), lida com objetos como espécimes e acho que eles poderiam oferecer uma explicação sólida para um alienígena do que significa viver em nosso modo de consciência. São como regurgitações de dados ou cápsulas do tempo - portais que revelam algum tipo de verdade.
 
CS: Eu queria perguntar sobre um plano que você inclui de uma escada rolante saindo da escuridão para uma luz solar brilhante e quase sagrada.
 
JM: Ah, o "plano Dorsky"?
 
CS: Escrevi "o plano Dorsky" nas minhas anotações, então, fico feliz que você tenha usado esse nome também!
 
JM: Filmei em São Francisco e pensei nele! Fiquei tão empolgada com uma palestra que Jerome Hiler deu no outono passado, onde falou sobre igrejas medievais e vitrais. Aparentemente, as igrejas medievais tinham apenas uma fonte de iluminação - o vitral frontal. Jerome considera que esses foram basicamente os primeiros cinemas, porque há um movimento acontecendo; não há outra fonte de iluminação. Isso me lembra a maneira como Len Lye descreve suas animações abstratas, que chamou de "devaneios de vitrais". Mas, sim, eu tenho alguns desses planos de transição que apenas mostram várias formas de tecnologias de transporte - escadas rolantes, barcos, escadas - que tratam da mobilidade e que nos movem pela paisagem.
 
CS: A paisagem parece ser muito importante em O Grande Bizarro. Você mantém os tecidos em primeiro plano e no centro da imagem durante quase todo o filme, e os enquadra para que o espectador também fique consciente da paisagem circundante, da geografia e do planeta como um todo. A luz passa e sentimos a rotação da Terra, assim como sua metodologia de edição permanece fiel à cronologia de filmagem.
 
JM: Não sei se outras pessoas considerariam O Grande Bizarro um filme de paisagem, mas acho que vale a pena tentar colocá-lo nessa categoria. Alguns dos momentos em que o tempo passa são inevitáveis ao fazer esse tipo de filmagem, e foi definitivamente um novo elemento incorporado ao meu processo, sem realmente ter tanta experiência de filmar ao ar livre ou por longos períodos de tempo. Muitas das diferentes seções do filme ocorrem no cair da noite ou no nascer do sol. E eu tentei brincar com esse senso de revolução e a natureza cíclica do dia de trabalho ao colocar, por exemplo, as sequências animadas com os globos girando, a agitação das rodas e os dispositivos mecânicos, coisas assim. Mas acho que esses elementos naturais se tornaram algumas das mais belas qualidades do filme. Eu queria dar uma noção de "todo lugar" - um espaço em que todas essas coisas estão acontecendo simultaneamente.
 
CS: Você viajou para quantos lugares?
 
JM: Boa parte da produção começou quando eu estava fazendo outras coisas relacionadas ao cinema, quanto eu estava realizando oficinas e, na metade da produção, comecei a ir a lugares em busca de imagens e temas específicos. Filmei por um período de cinco anos e em 15 ou 16 países - em todos os continentes, fora Antártica.
 
CS: A Antártica teria sido legal, mas O Grande Bizarro é um filme tão caloroso, em vários sentidos. Você está filmando em climas mais quentes, mas também o que alguns chamam de calor emocional. Você também vê seu trabalho como tendo essa atitude benevolente, alegre e exuberante?
 
JM: Eu sinto várias coisas sobre o filme, e acho que certas partes dele são deslumbrantes e generosas. Mas também muitas partes são sobre codificação multifacetada. Todo o senso de "deslumbramento" poderia ser como a camuflagem de barcos que mascara sua localização na água. Como grande parte do meu trabalho, este filme é um pouco enganador e possui várias camadas através das quais você pode lê-lo. Ele pode ser lido na superfície e ser um tipo de experiência sensorial, mas também está tentando criar conexões entre diferentes elementos, seja na linguagem e nos ritmos, nos padrões e nos tecidos, ou nas sobreposições de mão-de-obra e produto ou mão-de-obra e movimento. Algumas das cenas onde imagens filmadas ao vivo são intercaladas com imagens animadas são as partes mais cruciais para mim.
 
Ainda assim, o filme é caloroso a ponto de me fazer pensar: "Devo começar a filmar em climas de inverno?" Mas havia algumas questões quanto a isso. Primeiro, eu viajava para filmar quando não dava aula, então eram apenas os meses de verão que conseguia fazer algo. Depois, há o fato de muitos tecelões trabalharem ao ar livre em climas mais quentes, e a agricultura que eles precisam fazer para os corantes precisa de climas de verão, então o cronograma de filmagens precisava ser assim de qualquer forma. Para mim, o filme fica um pouco frio quando se muda para espaços institucionalizados com ar-condicionado, como a biblioteca ou a fábrica com tecidos feitos por computador.
 
CS: Estou curioso para saber sobre as interações que você teve com os trabalhadores nos locais, se você passou algum tempo entrevistando-os ou aprendendo alguns de seus processos.
 
JM: Certamente houve relações diferentes para tipos de coisas diferentes, e eu fui à muitos lugares, desde unidades familiares que pintam e tecem tudo à mão, à fábricas de bordados que faziam camisas Holiday Inn, grandes fábricas que são saris para serigrafia, arquivos têxteis e coletivos de tecelagem. Eu fiquei entre dois dias e uma semana com a maioria das pessoas que faziam coisas artesanais, pois nosso relacionamento era por natureza mais íntimo. Em muitos casos, eu estava hospedada com eles, então não estávamos limitados às restrições de um dia de trabalho. Vi os processos de tingimento, a maneira como criam seus fios, como desenham seus diagramas e como se lembram deles de cor. Eu também fiz um pouco de tecelagem. Nas fábricas, eu tive uma boa noção do que estava acontecendo, mas elas eram tão densas que sentia que poderia ficar lá por muito mais tempo.
 
CS: E os materiais que você estava fotografando foram achados ou você os pegou emprestado, ou comprou das pessoas que conheceu?
 
JM: Comprei algumas coisas, e outras emprestei e gravei no local. Mas muitos dos materiais são imitações baratas de coisas que podem parecer reais. Alguns deles peguei no lixo, e estavam emitindo gás na minha frente enquanto eu os animava sob a câmera. Alguns deles eu lavei, alguns deles eu precisava passar. Os mais sujos eu precisava sacudir. Na verdade, é por isso que espirrei no final. É um espirro real!
 
CS: Você compôs a trilha sonora do filme? Sei que no passado você colaborou com outros músicos.
 
JM: A maioria sim. Existem 12 músicas no filme e eu fiz 10. Um amigo fez uma das batidas para a música da biblioteca, e outro reforçou a instrumentação na primeira faixa. E depois há outra parte que é um remix de uma música que encontrei na Internet que usa o toque do Skype. Minha formação é em teatro musical, então os musicais têm sido meu interesse no cinema há muito tempo, embora em algum momento eu pensei em fazer O Grande Bizarro mudo.
 
CS: Completamente mudo?
 
JM: Sim! Mas com todas as experiências que tive viajando, percebendo a homogeneidade da música pop, senti que precisava assumir o pop. Cada nação está ouvindo música pop em 4/4. Não importa sua tradição musical, não importa sua história. É 4/4 no rádio, cara, e muito tem sido escrito sobre a ideia de ritmo e como isso faz as pessoas se tornarem trabalhadores mais eficientes. "Apite enquanto você trabalha." Isso transforma você em uma máquina.
 
CS: Foi a primeira vez que você trabalhou com tempos irregulares?
 
JM: Eu também fiz isso em Dusty Stacks of Mom, porque tinha a tarefa de escrever novas letras para a canção "Money", de Pink Floyd, que foi escrita em 7. Depois, meu filme Let Your Light Shine (2013) tinha polirritmos de 5/8 e 7/8. Para O Grande Bizarro, eu queria fazer algo grande, então fiz a primeira música em 11, o que é muito estranho, porque é extremamente anormal uma música pop estar em 11 - exceto "Hey Ya!", do OutKast, que emula um tempo de 11/4 sobre quatro ou oito compassos ou algo assim. Então essa música estava em 11 e tinha letras em um momento. No começo é complicado, mas os tempos compostos são totalmente sobre agrupamentos! "Um-dois-três-um-dois-três-um-dois-três-um-dois".
 
CS: Parece que as músicas no filme estavam, se não pedagógicas, preocupadas com noções de aprendizagem.
 
JM: Certamente. Para mim, a experiência toda de fazer o filme foi a de acessar diferentes tipos de conhecimento - especificamente um "experimentado" e um "aprendido". É a diferença entre esses trabalhadores fabricando tecidos com base em suas memórias e tradições, e alguém pesquisando os diferentes tecidos ou aprendendo a nomenclatura correta para discutir suas técnicas de tecelagem e seu papel na economia e religião. É sobre todas essas formas de acesso ao conhecimento: lendo sobre o mundo versus assistindo um filme sobre o mundo versus olhando diferentes partes do mundo na Internet versus saindo para um lugar diferente. Você começa a ver paralelos entre todas essas formas de conhecimento e as maneiras em que elas se relacionam com distinções de classe: a elite, com acesso institucionalizado ao conhecimento contra formas de conhecimento "mais pobres" que são adquiridas apenas através da experiência; os tecidos caros e os tecidos baratos. A própria ideia da linguagem tem a ver com classe. Você precisa ser de uma determinada classe social para aprender línguas e precisa ser de uma certa classe para saber como falar e escrever corretamente. Praticar arte. Aprender a ler e escrever música. Ter tempo para tocar.
 
CS: Essas preocupações sobre as distinções de classe em relação à aquisição de conhecimento e linguagem influenciaram sua decisão de usar ou não palavras faladas no filme? Quase todos seus filmes que vi até agora são desprovidos de linguagem, com exceção de Dusty Stacks of Mom.
 
JM: A questão de incluir palavras no filme existiu por muito tempo. Eu estava aplicando para editais de documentário, e todos perguntam "Quem são os personagens, qual é o arco de suas histórias, como você vai contar a história, como você vai deixar tudo claro?" Durante todo esse tempo eu estava lutando para encontrar as estratégias certas para sugerir as coisas. No final, depois de entrar no turbilhão de ver que os tecidos estão relacionados a basicamente tudo no mundo, eu não tive uma perspectiva única sobre isso, e minha experiência foi como uma câmara de respostas. Todas as informações estavam se contradizendo. Como "Ei, é errado terceirizar a produção de roupas para Bangladesh, exceto que essas pessoas precisam do dinheiro", ou "O turismo está errado, mas as pessoas realmente precisam do seu dinheiro", ou "Devemos reutilizar coisas ou desperdiçar a água para limpá-las?" É uma câmara interminável de respostas sobre a maneira certa e errada de ver essas coisas.
 
CS: Você diria que o filme funciona como uma crítica ou mesmo autocrítica em relação a essas preocupações, em que sua própria participação nesse looping de respostas se torna questionável e implicável?
 
JM: O filme é sobre estar preso dentro deste sistema onde as coisas são super-complicadas. Estamos num ponto em que ser vocalmente crítico é redundante ou sem sentido. Por exemplo, a Internet e os protestos contemporâneos nos permitem, como indivíduos, compartilhar nossas crenças o dia todo, mas ao mesmo tempo, ainda oprimimos aqueles que fabricam telefones ou computadores. Sempre existe essa cadeia alimentar de opressão.
 

 
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