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Notícias de casa
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Chantal Akerman | Bélgica/França/Alemanha | 1977, 85', cópia restaurada em DCP
 
Chantal Akerman se mudou de Bruxelas para Nova York em 1971, com 21 anos, após abandonar a escola de cinema. Durante os três anos que morou lá, conheceu o cinema experimental norte-americano, especialmente de cineastas estruturalistas, como Yvonne Rainer e Michael Snow. Estes filmes influenciaram sua própria prática cinematográfica, como no ato de observar pequenos gestos e ações repetitivas em planos de longa duração. Akerman também conheceu a cinegrafista francesa Babette Mangolte, que se tornaria uma colaboradora fundamental em vários de seus filmes feitos nos Estados Unidos e na Europa, entre eles o celebrado Jeanne Dielman (1975).
 
Notícias de casa foi o primeiro filme que Akerman realizou após o sucesso internacional de Jeanne Dielman. Enquanto a câmera de Mangolte observa cenas de Nova York (gravadas principalmente em Midtown e Lower Manhattan), a cineasta narra as cartas escritas para ela por sua mãe durante o período em que morou na cidade. São relatos da vida cotidiana da família na Bélgica, permeados por agrados e súplicas para que a filha mande mais notícias. As palavras dessa relação íntima e maternal são confrontadas por imagens e sons ambientes de uma metrópole distante e emocionalmente inacessível, onde passantes e automóveis se deslocam isolados.
 
Notícias de casa estreou no Festival de Cannes e hoje é considerado uma das principais obras de Akerman. Ele foi restaurado digitalmente pela Cinemateca Real da Bélgica em 2014, em um projeto de restauração da obra da cineasta. As duas versões do filme - uma falada em francês, e outra em inglês - foram restauradas, e o IMS exibirá a versão em francês.
 

 
"Sua década brilhante"
 
A entrevista a seguir com Chantal Akerman foi conduzida em Nova Iorque pela crítica de cinema Melissa Anderson em 2010 para o site Moving Image Source, na ocasião de lançamentos em DVD de vários de seus filmes, entre eles Notícias de casa e outros dois realizados na cidade. A versão original e maior da entrevista pode ser lida em inglês: Her Brilliant Decade . A tradução para português foi feita com a permissão de Melissa Anderson.
 
Melissa Anderson: Por que você se mudou para Nova Iorque?
Chantal Akerman
: Me mudei porque tinha um sentimento estranho, porém realístico, de que as coisas estavam acontecendo aqui. Eu tinha 18 anos quando sai de Bruxelas. Fui para Paris, e depois de Paris, passei seis meses em Jerusalém. Meu pai queria que eu me casasse, casasse, casasse. Fiz um filme, Exploda minha cidade (1968), que ficou muito bom, mas depois, fiz um segundo filme que ficou muito ruim. Achei que tinha tido sorte, como quando você joga cartas pela primeira vez, mas como o segundo filme ficou ruim, isso sinalizou que eu tinha que fazer o que meus pais queriam de mim: Me casar. Mas isso foi quase uma auto-negação pra mim. Eu conhecia um homem - ele depois morreu de AIDS - desde minha infância, ele estava em Jerusalém e decidimos nos casar. Mas depois de alguns meses em Jerusalém eu fiquei entediada. Falei "Por que nós não vamos para Nova Iorque? Eu acho que há algo no ar lá". Eu tinha 21 anos, ele 22. Chegamos aqui com 50 dólares no bolso.
 
MA: E vocês chegaram em 1971?
CA
: Sim. Eu tinha o número de telefone de Babette Mangolte, através de um cineasta que conheceu ela. Não sei por que liguei para ela, pois não faço muitas ligações. Mas fiz isso, e uma bela voz me respondeu. Eu não sabia que ela estava por dentro do mundo mais revolucionário da arte naquele momento, junto talvez com mais 500 pessoas. Era Richard Serra, Annette Michelson, Jonas Mekas, todos do Anthology Film Archives, Richard Foreman. Todas essas pessoas foram revolucionárias, e eu era uma menina que não conhecia nada. Mostrei Exploda minha cidade para Jonas e ele se encantou, então, imediatamente me tornei parte da família. Eu descobri uma outra maneira de olhar para as coisas. Eu estava certa em vir para Nova Iorque, mas se eu não tivesse conhecido Babette, como eu teria sabido que devia ir ao Anthology ou assistir peças de Richard Foreman? Eu nunca tinha ouvido falar nesses nomes, sabe? E Babette continua na minha vida, isso é maravilhoso.
 
MA: Você morou por quanto tempo em Nova Iorque?
CA
: Morei de novembro de 1971 até talvez abril de 1973. Mas voltei para Europa por dois ou três meses para montar os filmes O quarto (1971) e Hotel Monterey (1972). Eu fiz um outro filme que perdi, a maioria do material tratava de meninos que estavam em programas de reabilitação e prevenção no bairro de Yonkers. Estávamos filmando em película reversa, então não tínhamos nenhum negativo. Perdi entre uma metade e três quartos do material, mas sabe, eu era desleixada com meus filmes.
 
MA: Onde foi filmado O quarto?
CA
: Fica perto daqui. Foi na Rua Spring, entre a Thompson e a Sullivan. Eu era como um vagabundo. Ia de uma cama pra outra, as pessoas tinham a gentiliza de me acolher em seus salões. Depois de um tempo elas cansavam de ter alguém lá, embora eu estivesse trabalhando. Trabalhei em um restaurante, em um brechó, estava trabalhando muito. Eu também estava roubando dinheiro do 55th Street Playhouse, uma sala de cinema pornô gay onde operei o caixa. Foi assim que consegui o dinheiro para fazer O quarto e Hotel Monterey. Um dia eu estava em um café lendo o Village Voice em uma tentativa de encontrar algum quarto. E um cara me olhou e perguntou, "Você precisa de um lugar para ficar? Vou para Europa amanhã e tenho algo com aluguel fixo". Meu aluguel era $49 por mês. Naquela época, Nova Iorque era muito perigosa, mas a Rua Spring ficava perto do Little Italy [Pequena Itália], então estava protegida pela Máfia.
 
MA: Você ficou neste apartamento por quanto tempo?
CA
: Seis meses.
 
MA: E onde estava o Hotel Monterey?
CA
: Estava entre as ruas 96 e Broadway, acho. Foi destruído.
 
MA: Qual era a sua relação com o hotel?
CA
: Eu conheci um cara japonês que morou lá. E às vezes, quando eu não sabia onde dormir, dormia no sofá em um de seus dois quartos. Fiquei fascinada porque era uma pensão ["welfare hotel", pago pelo governo para abrigar pessoas de baixa renda que aguardam moradia], com muitos residentes velhos.
 
MA: Muitos de seus filmes da década de 1970, com exceção de Notícias de casa, são definidos por quartos. O que te fascinou tanto sobre esses lugares tão pequenos e íntimos?
CA
: Espaços fechados. Eu acho que, se você vê o filme que fiz em Tel Aviv, (2006), vai entender que, de alguma maneira, o quarto é uma proteção, mas também é uma prisão. E como filha da segunda geração, que significa que minha mãe estava nos campos de concentração, eu perpetuo essa coisa de prisão. Eu sempre me coloquei em uma prisão, mas também, sempre tenho uma pequena porta que quebro, para depois fazer filmes! Mas estou em uma espécie de situação estranha: sempre gostando da minha prisão, amando-a e odiando-a, e lutando contra ela, mas depois, quando me aproximo demais da liberdade, tenho medo e volto para minha prisão.
Isso é uma espécie de explicação psicanalítica, mas também, em termos cinematográficos, o que eu gosto são as paredes, aquelas linhas. Filmo sempre com a câmera na minha altura, para fazer de maneira direta. O resultado então tem a força de uma imagem abstrata e de uma imagem concreta. Isso é muito o caso em Hotel Monterey. Se você vê esses corredores, são linhas, mas há também um corredor, e de súbito você esquece que é um corredor, são apenas linhas e cores e material. É por isso, também, que fico fascinado com o ato de filmar interiores - portas, luzes, corredores. É uma moldura pronta.
 
MA: Notícias de casa, que você filmou no verão de 1976, é um dos maiores retratos de Nova Iorque. Como foi que você decidiu quais partes da cidade você queria registrar?
 
CA
: Bem, são provavelmente os lugares que conheci melhor. O filme começa perto daqui, mas um pouco mais para o sudeste. Eu conheci o lugar muito bem. Quando cheguei em 1971, não tinha dinheiro nenhum, então andei muito. Até o momento quando consegui o apartamento na Rua Spring, eu sempre ficava com pessoas e não queria chateá-las. Então sempre sai e andei, andei, andei. Visitei e vi de tudo, e isso era fascinante. E todo mundo me dizia, "Não vai para lá!" Era um momento muito paranoico, tinha muitas pessoas viciadas em drogas, muitos loucos falando na rua, muitas mulheres com sacolas de compras. Nova Iorque estava falida na época, mas o falecimento tinha tanto charme e tanta força. Agora é uma cidade para pessoas ricas. Mas na época, Nova Iorque era muita barata, você poderia tomar um grande café da manhã por 49 centavos. Isso era suficiente para passar o dia inteiro. Depois andava. Eu estava com minha câmera Pentax nas avenidas A, B, C. Não tive medo, então ninguém mexia comigo. As coisas me fascinavam.
 
MA: Em Notícias de casa você parece especialmente fascinada com a estação de metro na Times Square.
CA
: Sim, porque é como Dante, mas organizada! E também porque quando se está lá se vê todas essas plataformas e trens chegando e se esvaziando. Você vê as pessoas. Em um plano, você já tem um mundo. No verão, as pessoas se vestem com poucas roupas. Elas estavam lá com seus corpos, era fascinante. Também, a estação Times Square parece como um palco, embora seja realidade. Uma coisa se esvazia e uma pessoa aparece por detrás de uma coluna - é uma cena. Se eu tivesse que fazer isso num filme de ficção, não acho que poderia fazê-lo tão bem. É um documentário, mas encenado, como algo coreografado. E todo esse grafite não existe mais. Eu acho que o filme é como um arquivo de Nova Iorque, e também, do World Trade Center, que você vê no final.
 
MA: A cena final foi filmada na Balsa de Staten Island?
CA
: Sim. E você tem a sensação de que a cidade está afundando. Os pássaros não estão dizendo isso, mas eles sabem que a cidade vai morrer, se afundar no mar, e que eles vão tomar poder, como eles fazem no filme de Hitchcock.
 
MA: Fico fascinada com a parte do filme em que você viaja na direção norte na Avenida 10, começando na Rua 30 e terminando na Rua 49. A área provavelmente estava quase abandonada na época.
CA
: Sim, era o Hell's Kitchen. O que eu adoro é que a vista é plana, fechada e, de súbito, você tem uma abertura. É a forma em que Nova Iorque é construída. Muitas coisas estão acontecendo, como em uma coreografia. Trabalhei de maneira silenciosa. Não fiz com som sincronizado. Acrescentei todos os sons mais tarde e reconstruí o som totalmente. Isso é muito óbvio se você escuta no início. Quando o carro está chegando, você não precisa de todos os ruídos para sentir que ele está chegando. Inseri alguns ruídos quando senti que era bom ritmicamente, e então você não questiona isso. A ideia de som sincronizado é, de uma maneira, subvertida. Eu transmito a sensação de som sincronizado, mas não da maneira em que outros cineastas fazem isso. Eu criei o som como queria criá-lo. O que você ouve é como a chegada das ondas de som. Mesmo com as portas do metro, não coloquei todos os sons. Cada elemento de som no filme foi uma escolha.
 
MA: Os laços entre mães e filhas estão muito presentes em seus filmes.
CA
: Ah sim, demais. Tentei me livrar disso. Sou filha da segunda geração. Nasci em 1950, e a minha mãe saiu dos campos de concentração em 1945. E, assim que eu nasci, eu já era um bebê velho, pois minha mãe precisava de todo o espaço para sua dor. Ela foi para Auschwitz, seus pais morreram, ela sobreviveu. Senti esse luto quando criança, então eu não poderia ficar brava. Eu tinha que proteger ela, eu não podia existir para mim mesmo, apenas em relação à ela. Vou fazer 60 anos daqui a alguns meses, e finalmente estou dizendo Eu. Um ano e meio atrás, eu finalmente percebi que estava com raiva, como uma menina de 15 anos que passa por uma revolução. Foi apenas isso, eu sempre adorei minha mãe, foi uma maneira de fugir e esconder minha raiva, não poder existir. Como ela era uma mulher, eu não poderia existir como uma mulher. Ela sentia dor, então eu não podia senti-la. Ela foi machucada, então eu não podia gritar. Assim que eu nasci eu já era velha, e nunca mudei, continuo sendo um bebê velho. Você entende? É um problema com crianças da segunda geração, após os campos. Em psicanálise, eles falam sobre a mãe morta que você engole dentro de si. É um pouco complicado. Continua sendo problemático.
 
MA: É uma relação muito complexa.
CA
: Ela era muito bonita quando jovem. Ela ainda sabe e projeta isso. Ela estava tentando ser elegante, pois éramos muito pobres na minha infância. E eu totalmente internalizei o fato de que éramos pobres e que eu não deveria pedir nada de ninguém, especialmente de meus pais. Mas minha mãe sempre queria ser bela ao sair com meu pai. Quando eu tinha dois ou três anos ela já me perguntava, "Chantal, devo me vestir assim, ou assim?" Eu tinha que dizer "Tenha uma boa noite, um bom jantar", como uma pessoa já velha, dando - especialmente para minha mãe - todo o espaço. O cinema era pura sublimação. Se eu não tivesse começado a fazer filmes, eu estaria morta. Foi por isso que nunca me importei em ser elegante ou de me vestir bem. Minha mãe era sempre a mulher. Eu não sabia se eu era um homem, uma menina, uma filha, um bebê, um animal...
 
MA: O laço entre mãe e filha em seu filme Os encontros de Anna (1978) é quase erótico.
CA
: Sim, minha mãe sempre quis que eu dormisse com ela.
 
MA: Nua?
CA
: Não, mas é a mesma coisa. Ela costumava me acariciar quando eu me deitava em frente da televisão à noite, até o momento quando sai de casa aos 18 anos. Ela me acariciava como uma amante, pensando que era simplesmente normal fazer isso. Mas não é. Você precisa de um pouco de separação. Quando eu escrevi o livro Uma família em Bruxelas, 2003 - em um determinado momento, e eu não fiz isso de propósito, mas troquei as vozes: Você não sabe mais quem é a mãe e quem é a filha.
 

 
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