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"Poemas de Storm De Hirsch"
 
Segue uma breve seleção de poemas de Storm De Hirsch, cuja poesia completa foi reunida e publicada em 2018 no livro Mythology for the Soul: The Collected Poems of Storm De Hirsch. As traduções foram feitas de inglês para português pelo poeta e tradutor brasileiro Victor Scatolin Serra (Walter Vector).
Agradecimentos especiais vão ao Stephen Broomer, editor do volume, que também participou na digitalização e remasterização das gravações de De Hirsch dos poemas.

 
"Onde quer que você esteja"
(publicado originalmente na primeira coleção de poemas de De Hirsch, Alleh Lulleh Cockatoo and Other Poems, em 1955)

 
sai daí .. sai ..
 
cortejo a sua nudez
embora até prefira
o sabor do sabre
meu escarlate riso
afasta a traça e ave
em rés mergulho
processado pelo vasto maquinário
do bate-estaca que estressa o espaço
ao tesar o arco de fogo aos deuses enciumados
 
e no afã do arco
do alto do meu fôlego tremelique
de extirpar palavras
acender de signo e lívido símbolo
talhado em pedra
sobre madeira
sobre papiro
presa e encalacrada
onde o dente esfaqueia a cauda
 
e lá eu endosso
o escárnio do esconde-esconde
em cabra-cega
perdura
a cinza alquímica
que por dias ao léu sorteia
e recupera uma centelha
da equação absoluta
até o carrasco fechar o laço
 
onde quer que você esteja..
 
*
 
"O Homem Tatuado"
(publicado originalmente na San Francisco Review 7, em 1960)

 
Eu visto os tecidos tatuados da conquista,
a Serpente Flamejante, o Escaravelho
de ouro e opala, porque fui o primeiro
a pisar na Lua.
 
Um Só Ser me viu.
 
Engatinhando na orla de um novo breu
caça-fantasmas de cascos de cágados
e lobisomens noctâmbulos
na mata, eu rondo ao redor do mundo.
Um mundo insone atordoado pelo tempo
esgoelando a asa alastrada da Crisálida
me agarro aguerrido ao relógio
que dirige com seus braços minha vida.
 
Vermes navegam em folhas trêmulas,
com um medo intenso do vento sigiloso,
cujo hálito laminado
já rasgou os raios de um Olho-Gordo
ao Signo do Pêndulo.
 
Meninada Marítima à deriva no oceano
numa bola de cristal sem nada, a nado
na álvea cama de névoa, e poça de desova
de assassínios assistidos na lanterna no fundo
do poço sem rosto. Batendo na madeira, então
vêm ver o Homem Tatuado, marcado
pra vida, tatuado
pelas lágrimas que escorrem do útero,
pelos doentes golpes na gaiola,
pelo iscar dos culmes calvos
dançando nos ciscos do espaço.
 
Eu sou agora o Mergulho na Noite,
no afinar do fio de um planeta
satisfeito pela silva solução
obsecrado por nascer.
 
*
 
"Um fino chuvisco"
(publicado originalmente no volume de De Hirsch, Twilight Massacre and Other Poems, em 1964)

 
um fino chuvisco caiu sobre o rio
mudos murmúrios
sobre a água cintilante
enquanto sombras verdes encobriam
uma jornada amarrotada
e a filigrana oca
duma quimera dourada
que jazia vazia
em berço podre
e quebrada coroa
 
por trás dos olhos e anos
por trás do lance de dardos
das escalas granadas
e mata amorfa em gelo e crista
morte
num canto gutural de amor
salpicando açúcar no beiço do rio
corda em volta da dor que torna
peitos maduros de pera
e tingidos de canela
 
um chuvisco fino
testemunha a tudo e nada
ao ungir o rio
e ventilar sua sibilância
reverbera ossos macios
atrás dos portões do parque
o rio
perdurando
desejo e desespero
o peixe em sua barriga
o tronco flutua nas costas
e infla agora com promessas
e venta a dor para outras terras
pela dança incoerente da ciranda
que circunda as marés
 
*
 
"Com o chegar do inverno"
(publicado originalmente em Twilight Massacre and Other Poems, em 1964)

 
Com o chegar do inverno
vou estralar os ossos do meu orgulho
que vestem um vestuário evasivo
de um mundo perdido,
e então vou ver um crepúsculo revirado
a apanhar uma canção surrada de ninar
atirada do seio da noite.
Rodando um cesto cheio de feridas
vou traçar a genealogia da trégua,
a menos que os túneis sejam escuros demais
para ver quem é que me espera do lado de lá...
 
Quem sabe?
Talvez haja braços
esticando uma grande faixa de boas-vindas
pelo retorno de um boa-vida...
pode ser que
eu só ouça os sinos
a dobrar na cidadela a ecoar nos campanários
espalhando alarme como larvas
semeadas em fresca carniça,
ao meu regresso...
O que é um sussurro
perto do vento?
 
Com o chegar do inverno
e seus penduricalhos
como o milagre de cara e coroa
de uma moeda bem jogada
desbragada calma
enquanto no sudeste do adeus
eu estiver
seguirei lembrando
com meus próprios olhos...
 
*
 
"Mitologia para a alma"
(publicado originalmente em 1959 no livro A New Folder: Americans: Poems and Drawings, editado por Daisy Aldan)

 
                     meu pai me enviou
                     por três cavalos
                     e eu voltei um rei
 
          de arco longo
          e flecha forte
          o sopro de enxofre
          sopra
          sobre o cadáver nu
 
          dobra um zero
          curva uma cruz
          treme uma nota
          pra marcar o compasso
          pras rezadeiras da fonte
 
um dia de vira-lata
com rabo entre as pernas no céu
portando porte cósmico
com sete tardes
traçando a certeza do desastre
para um vento irrequieto
caído do seu cavalete
seu inexorável mergulho
rumo a novos feixes de espaço
 
este era o dia
pras mãos ocas tocarem
um tridente
garfado de enfeites de claustro
ou a erguer um graal nublado
cheio de desejos de afogar-se
no mar
 
          desejo de mente eu levo
          e desejo de pensar
          eu moldo
 
pisem em ovos senhoras
pisem vívidos senhores
para o outro lado do globo
onde
 
o nascimento da razão
acachotado em folhas de murta
está trancafiado numa parede
onde
 
o cavalo selvagem
de cenho suave rastreia pérolas
caídas numa grama delicada
e em seu empinar congelado
erigido imóvel
para o turbilhão
o sorriso de bronze viscoso
e o aceno caliopesco
girando em falso
num carrossel de pensamentos entrelaçados
 
          desejo de dúvida me leva
          e desejo de medo
          eu moldo
 
pisem vívidas senhoras
pisem vívidos senhores
rumo ao lado mais perto do globo
onde
 
há uma curva na verdade
uma equação perpétua
que carrega
o falso testemunho
à realidade do homem
e apadrinha uma atormentada busca
onde
 
o soldado
seguindo o som tímido
dos sinos
a soar em seu capacete
sobe lentamente a colina
com um alfinete preso
em sua canção amortecida
pensando no inimigo
que vive sem frescuras na floresta
coberto de mármore
 
          o desejo do sono eu levo
          e o desejo da visão
          eu moldo
 
pisem em ovos senhoras
pisem em ovos senhores
rumo ao interior do globo
onde
 
as entranhas de uma promessa quebrada
aprisionadas num polar urdume
observam uma pálida palma crescer
dourada
num terreno deserto
onde
 
no nevoento
breu
e folhas sedentas de libertação
nas primeiras pontadas do doar
o bastão
sem saber a quem
acarinhar
a quem matar
ainda bate por seu mestre
mais do que o desejo
ele teme mais ao ato
que a esperança
ele teme a perda
o medo
e passa as noites em claro
à deriva com o amor
enterrando-se em seus sonhos
 
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