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Reportagem: Jorge Silva e Marta Rodríguez
 
Seguem trechos de uma entrevista com Marta Rodríguez e Jorge Silva que foi publicada em outubro de 1982 pela Cinemateca de Bogotá na revista Cuadernos de Cine Colombiano, primeira época, No. 7, em uma edição especial sobre os cineastas que foi lançada em conjunção com uma retrospectiva. A entrevista foi conduzida pela Claudia Triana de Vargas, então diretora da Cinemateca, que também organizou o dossiê. A entrevista integral pode ser conferida em sua versão original em espanhol através do link Idartes se muda a tu.  A tradução para português foi feita com a permissão da Cinemateca de Bogotá e de Idartes (Instituto Distrital de las Artes), Colômbia.
 
Claudia Triana de Vargas: Quando vocês falam sobre cinema, vocês o definem como instrumento de resgate da história, ou como instrumento de sensibilização de setores populares em luta. Vocês preferem o cinema engajado acima de um cinema mais pessoal?
 
Jorge Silva: Acho que a Marta não vai me contradizer se eu disser que a história sempre foi uma obsessão minha. Nunca se sabe exatamente a origem de suas obsessões, mas quando consegue racionalizá-las, coloca seu trabalho em perspetiva de um projeto cultural e tenta agir de acordo. Sabemos que Colômbia é um país sem percepção de seu passado, sem memória, que sofre de uma espécie de amnésia coletiva. Basta olhar para um fato político comum e atual: nas eleições os colombianos voltam e votam nos mesmos que há pouco tempo consideravam incapazes. Além disso, o que as classes dominantes legalizam como história é um espaço onde ao mesmo tempo se legitima uma dominação. Penso que é urgente recuperar esse passado, não por um desejo de erudição histórica, de ir ao passado apenas por ele, mas aderindo-o ao conhecimento do presente e assim poder assumir um projeto para o futuro. Porque um povo que não conhece seu passado, não controla seu presente nem seu futuro, não se conhece, carece de identidade, e isso me parece uma circunstância dramática angustiante.
 
Triana de Vargas: Entendo que Nossa voz de terra, memória e futuro surge como uma releitura do projeto inicial de uma trilogia sobre o problema camponês. Mais tarde, vocês decidem trabalhar o problema indígena como um problema específico.
 
Rodríguez: Quando mostramos Campesinos aos companheiros indígenas do CRIC, eles não gostaram do filme. Eles não se reconheceram nele. No filme há imagens que os confundiram, por exemplo, quando aparece um camponês falando na Praça de Bolívar, e nas imagens estavam os indígenas. Eles pareciam não ter voz própria e tiveram de pedir emprestado a um camponês. Além disso, foi um momento de crise política na ANUC [Associación Nacional de Usuarios Campesinos, ou Associação Nacional de Usuários Camponeses], quando o CRIC se separou porque a burocracia camponesa passou a utilizá-lo.
 
Triana de Vargas: Entendo também que a relação com os indígenas os obrigou a repensar a abordagem visual de seu trabalho.
 
Rodríguez: Os indígenas possuem um Eu coletivo, eles tomam todas as decisões coletivamente. Quando viram cenas em que um único indígena falava ininterruptamente, eles simplesmente disseram: 'Aquele índio é louco'. Também não gostaram que os líderes exerciam um papel tão importante no filme. Trino Morales [um ativista indígena colombiano] me disse: "Se colocarem tantos líderes, será como uma novela de rádio." Sobre Campesinos, Gregorio Palechor [outro ativista colombiano e um dos co-fundadores de CRIC] disse: "Por que misturar indígenas com camponeses, é como misturar mulas com cavalos". Os indígenas nos fizeram perceber que a narrativa de nossos filmes ia contra sua forma de ver a realidade. Outro exemplo: eles viram um close-up de um indígena com o rosto banhado de suor, mas não viram a ferramenta nem o trabalho que estavam fazendo e disseram, "O que é isso?" "O que significa isso?" Percebemos que eles tinham outro sentido de tempo, de espaço, de ritmo que era necessário conhecer. Por isso fomos conviver com eles, para abandonar os nossos preconceitos.
 
Triana de Vargas: Vocês passaram quanto tempo na comunidade dos Coconucos?
 
Silva: O trabalho de campo durou um ano. O trabalho inteiro tomou quatro anos.
 
Triana de Vargas: De onde vem esse símbolo-personagem, proprietário de terras, demônio policial?
 
Silva: De uma história contada por Julián Avirama [participante e ator no filme] que mais tarde chamamos de "Mito da Huecada" [Esvaziamento]. Nessa história, ele nos contou como dois homens procuravam algumas vacas que estavam perdidas, então subiram para procurá-las perto de um vulcão, e, em um lugar onde nunca deveria haver ninguém, apareceu um curral de gado e um mordomo que disse ser o diabo. Em seguida, ele relata como o diabo também aparece na forma de um carabineiro e um proprietário de terras, os três montados a cavalo e com esporas, como o conquistador da América. Tínhamos essa história gravada e para visualizá-la era preciso realizar uma encenação. Reconstruímos o mito da Huecada com o próprio narrador e com um companheiro dele. Os dois nos ajudaram a procurar locais, a recolher o gado e os elementos necessários para filmar a cena quando sobem para procurar o gado no nevoeiro.
 
Triana de Vargas: A névoa é um personagem no filme.
 
Silva: O universo plástico visual daquela região é muito sugestivo, onde a neblina é um elemento muito importante porque as pessoas vivem em fazendas de charneca cheias de histórias de fantasmas que se perdem à noite. Toda aquela mitologia que se passa no nevoeiro, em isolamento, porque as fazendas são isoladas de tudo.
 
Triana de Vargas: Você disse antes que em Nossa voz a encenação surge como uma necessidade do desenvolvimento da investigação.
 
Silva: É uma reconstrução documental seguindo fielmente alguns textos, algumas narrações.O resultado final, eu acho, é muito positivo. Em Nossa voz há uma importante contribuição do ponto de vista formal, aquele personagem-símbolo que emerge de uma realidade onde vimos que mito, ideologia, política, realidade e fantasia, pensamento mágico e processos políticos contemporâneos interagem e coexistem. Devido a essa dualidade, essa dialética, chegamos à relação entre o documentário de tipo naturalista, integrando ao registro documental, outras formas de percepção da realidade.
 
Triana de Vargas: Em uma reportagem recente vocês disseram que quase todos os líderes indígenas que aparecem no filme foram assassinados.
 
Rodríguez: Sim. Justiniano Lame foi morto em 4 de fevereiro de 1977. Ele foi morto por um policial enquanto recuperava terras. O policial atirou nele e o deixou sangrando.
 
Silva: É curioso que Justiniano Lame morra na fazenda San Ignacio, quarenta anos depois de ter sido capturado na mesma fazenda no campanário da igreja Manuel Quintín Lame.
 
Rodríguez: Avelino UI faleceu em 4 de novembro de 1978. Os pássaros [nome dado a grupos paramilitares nas décadas de 60 e 70] o mataram quando ele voltou do mercado com sua esposa. Ele era um líder muito importante na área de São Francisco. Em 1979 matam Benjamín Dindicué, um dos líderes mais importantes de Cauca. [A história de Dindicué é recontada em um outro filme de Rodríguez e Silva, La voz de los sobrevivientes].
 
Triana de Vargas: Vocês não tiveram problemas com as autoridades colombianas ou com grupos de extrema-direita por causa de seus filmes?
 
Silva: Na Europa alguns diplomatas colombianos se manifestaram contra Nossa voz de terra, memória e futuro. Chircales foi ameaçado com um processo criminal. Um detetive nos perseguiu por um longo tempo, para nos assustar. Uma vez me investigaram por algumas imagens minhas tiradas em Planas, testimonio de un etnocídio, porque o pessoal do exército dizia que era pura montagem, que nunca haviam torturado ninguém.
 
Triana de Vargas: Qual é a sua posição frente à situação atual do cinema colombiano?
 
Silva: Acho que estamos claramente diante de um processo de industrialização que pode ser mantido dependendo das possibilidades que o Estado, através do FOCINE [Compañía del Fomento Cinematográfico, presente na Colômbia entre 1978 e 1993], dá a essa atividade e também dependendo da capacidade do sindicato de conquistar as suas demandas. Nesse sentido, parece-me que a responsabilidade dos sindicatos é muito importante porque sua capacidade de organização, sua capacidade de luta e sua capacidade de criar um espaço cultural depende de um futuro alternativo. Falando estritamente do significado cultural do cinema que está sendo feito agora, acho que estamos diante de um deserto. Hernando Martinez [Hernando Martinez Pardo, crítico e historiador importante do cinema colombiano] fala sobre quatro filmes resgatáveis - Pura sangue (Pura sangre, 1982), de Luis Ospina, Canaguaro (1981) e La agonía del difunto (1981), de Dunav Kuzmanich e Nossa voz de terra, memória e futuro. O resto do cinema que se faz agora na Colômbia está abaixo das necessidades culturais do país.
 
Triana de Vargas: Vocês estariam dispostos a trabalhar com apoio de FOCINE?
 
Silva: Não apenas estaríamos dispostos, mas precisamos fazer isso. Vamos continuar fazendo filmes independentes, mas dentro da indústria. Não queremos mais fazer um filme a cada cinco anos. Temos trabalhado assim, não porque queremos fingir ser exóticos, mas porque essas foram as condições em que tivemos de trabalhar. Mas se existe a possibilidade de produzir cinema de outra forma, acolhemos essa possibilidade, mas a partir de uma independência de critérios. El cadáver de los hombres invisibles é um outro projeto nosso cujo roteiro, baseado na história homônima de [Arturo] Álape, ambos escrevemos. Mas a ideia mais bonita é aquela que Lucas, nosso filho, propôs quando estávamos correndo para chegar de manhã na Cinemateca e um semáforo nos parou. Ele me disse: "Não se preocupe... um filme não é a coisa mais importante da vida. A coisa mais bonita é a felicidade." Ele tinha 6 anos.
 
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