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"A casa é escura"
 
Segue uma tradução para português (do inglês) de uma conversa com Forough Farrokhzad em 1963, logo após a estréia de A casa é escura. O texto foi originalmente publicado em persa, na revista iraniana Roshanfekr ("O intelectual"), e logo depois, foi publicado em inglês no jornal Kayhan. Embora a entrevista tenha sido realizada com Farrokhzad e com Ebrahim Golestan, o trecho traduzido abaixo conta apenas com a voz dela. Ele é seguido pelo monólogo escrito e narrado por Farrokhzad no filme. Agradecemos Mitra Farahani (da Écran Noir Productions) e Carmen Accaputo (da Cinemateca de Bolonha) por disponibilizar a entrevista, e Thaís Chagas, pela tradução para português do monólogo.
 
Roshanfekr: Sra. Farrokhzad, você poderia, por favor, descrever as circunstâncias da pré-produção do filme?
 
Farrokhzad: No verão passado, acompanhada pelo Dr. Raji, viajei para Tabriz para conhecer pessoalmente a colônia de pessoas com hanseníase e também avaliar as facilidades e nossas necessidades. No início, as autoridades locais, incluindo o chefe do centro médico e o médico assistente da colonia, resistiram à ideia. O hospital não tinha médicos, o único profissional era um assistente médico que prescrevia medicamentos rudimentares, como sulfatos, para o tratamento de pacientes. A estrada da montanha para a colônia era atrozmente pavimentada. A primeira vez que visitei a colônia e vi os pacientes, a experiência foi horrível.
 
Roshanfekr: Por que "horrível"?
 
Farrokhzad: Como você sabe, a vida em uma colônia para pessoas com hanseníase parece normal para aqueles que vivem lá. Suas vidas não são essencialmente diferentes das nossas. No entanto, eu era uma estranha e estava entrando com minha própria vida, eu era o intruso no ambiente deles. Claro, ver pessoas privadas de tudo é chocante. Perderam tudo, em particular, um rosto humano.
 
Mas, apesar de tudo isso, eles possuem todas as qualidades de todos os outros seres humanos, bem como todas as emoções daqueles que são livres da hanseníase. O que lhes parece comum, seu defeito físico, nos parece lamentável e horrível. Conheci uma mulher, por exemplo, que havia efetivamente perdido todos os traços de seu rosto, fora um buraco negro no meio dele, através do qual ela falava. Todo o seu rosto estava envolto em bandagens e a única característica visível era aquele buraco.
 
Roshanfekr: Como e de que maneira as pessoas olhavam para você?
 
Farrokhzad: Durante os nossos primeiros dias lá, eles reagiram de forma muito negativa. Tiveram uma experiência ruim com visitantes anteriores que só viram seus defeitos físicos. Geralmente, as pessoas com hanseníase sentem uma espécie de desprezo pelas pessoas saudáveis. Sabendo disso, eu me preparei desde o primeiro dia para seguir em frente com a ideia de que estava lidando com pessoas normais. Tentei ser gentil com eles, sentei-me à mesa de jantar e gentilmente acariciei suas feridas. Aos poucos, as mesmas pessoas que nos xingaram nos primeiros dias passaram a confiar em nós e se tornaram nossos amigos.
 
Roshanfekr: Quando você tocou nas feridas dessas pessoas, não teve medo de ser infetada?
 
Farrokhzad: Não, em relação a isso, o Dr. Raji tranquilizou minha mente. Ele me assegurou que, para ser acometido pela hanseníase, em primeiro lugar é preciso estar na companhia de pessoas com a doença por um longo período. Em segundo, o corpo deve ter disposição para adquirir a doença. Em terceiro, sempre que eu estava em contato físico com os pacientes, lavava minhas mãos depois. Em todo o caso, meu comportamento acabou me tornando querida por eles a ponto de, mesmo depois de um ano, ainda me escrevem cartas e pedem coisas.
 
Roshankfekr: Eles escrevem o quê, por exemplo?
 
Farrokhzad: A maioria das cartas são petições cheias de queixas sobre suas condições. Muitos insistiram que eu entregasse suas queixas diretamente à Shahbanu [Rainha Farah Pahlavi], ou querem que o Ministro da Saúde saiba que estão com falta de arroz, ou que seus filhos se reviram na lama suja, ou eles desejam algum tipo de atividade para mantê-los ocupados na colônia.
 
Roshanfekr: Quais foram as primeiras frases que você ouviu deles?
 
Farrokhzad: Eu ouvi muitas coisas. Por exemplo, no dia da minha chegada, encontrei um homem cujo corpo inteiro estava paralisado. Seu lábio inferior também estava incapacitado. Sempre quando ele falava, seu lábio inferior simplesmente caía, e ele usava os dedos para colocá-lo no lugar. Este homem reclamava constantemente para mim e para os outros: "Pergunto-lhe, quantas vezes devo escrever às autoridades e pedir-lhes que permitam que minha esposa venha ficar comigo? É verdade que estou doente e minha esposa é saudável, mas ela quer morar e envelhecer comigo. Por que vocês têm um problema com isso?" Vi mulheres que haviam perdido os olhos por causa da doença, e, no lugar dos olhos, tinham apenas linhas vermelhas no rosto. E, no entanto, elas colocavam maquiagem nos olhos com cuidado e meticulosidade em torno dessa fenda visível. Essencialmente, as mulheres da colônia são muito fascinantes. Todas elas usam várias pulseiras e colares. Elas até pegaram minha pulseira e colar enquanto eu estava lá. Os espelhos são onipresentes, em todos os quartos. Essas mesmas pessoas, que perderam o nariz, a boca, os olhos e os ouvidos para a doença, adoram se olhar no espelho.
 
Roshanfekr: Seu filme é lindo. Você poderia explicar como alguém pode criar beleza a partir da feiúra da hanseníase?
 
Farrokhzad: Acredito que a feiúra não tem um significado inerentemente concreto. Eu via os pacientes como pessoas com uma espécie de doença, como qualquer outra pessoa com um problema de saúde. Além do mais, quando você vê uma mãe com hanseníase que aperta seu filho contra o peito, o amamenta e não tira os olhos dele, você acaba de testemunhar a beleza perfeita. A feiúra de um paciente pode ser repulsiva no primeiro encontro, mas quando você tem uma interação humana real, percebe que está conhecendo outro ser humano. Você encontrará amor, bondade e...
 
Roshanfekr: Você encontrou quais exemplos desse impulso de amor e bondade?
 
Farrokhzad: Anteriormente, o casamento entre pessoas com hanseníase era ilegal. Eu entendo que eles ganharam a permissão para se casar apenas nos últimos três anos. Antes disso, qualquer contato sexual entre homens e mulheres com hanseníase na colônia era clandestino. Eles me contaram a história de um homem doente que se apaixonou por uma mulher doente e acabou matando-a. Ouvi dizer que ele havia sido executado recentemente em Tabriz. Há intensa energia e desejo sexual, bem como desejo romântico, na colônia porque os pacientes não têm nada para fazer o dia todo, exceto olhar para o vazio da eternidade. Durante os doze dias que lá passamos, assistimos a quatro casamentos entre pessoas com hanseníase. No filme, incluímos algumas cenas do último casamento. Para onde quer que você olhe, você vê crianças, e mais crianças.
 
Roshanfekr: As crianças de pessoas com hanseníase também herdam a doença?
 
Farrokhzad: As mães recebem enxofre prescrito, que é transmitido através do leite materno para o bebê para prevenir a hanseníase. As crianças que vi eram todas saudáveis até os quatro anos de idade; no entanto, uma porcentagem significativa das mais velhas tinha a doença. Geralmente, as famílias permanecem juntas na colônia. Em uma família de cinco pessoas, mãe, pai e filhos tinham hanseníase, todos exceto um bebê. Esse bebê pode crescer para viver toda a sua vida na colônia e nunca pegar a doença, ou pode ser infetado em algum momento.
 
Roshanfekr: Os parentes dos pacientes vêm visitá-los?
 
Farrokhzad: A maioria das famílias com hanseníase (por exemplo, uma família de quarenta pessoas) vivem juntas e têm a doença. Dito isso, porém, às vezes eu via um pai ou um tio esperando no portão de entrada da colônia para visitar um parente. Claro, as regras não permitem que eles entrem.
 
Roshanfekr: Quais são as esperanças e desejos deles?
 
Farrokhzad: Iguais aos nossos. Claro, suas vidas diárias são muito mais monótonas e silenciosas do que as nossas. Eles, de alguma forma, se divertem e se mantêm ocupados. Enchem e carregam baldes d'água, pegam folhas das árvores e aram a terra com uma pá, mesmo sem sementes para plantar. Alguns também têm outros desejos específicos. Um velho me pediu repetidamente uma prótese de perna. Esse era o seu maior desejo: uma prótese de perna.
 
Roshanfekr: Você testemunhou quais exemplos de desespero e desesperança?
 
Farrokhzad: A desesperança não tem sentido ali porque a esperança não existe. As pessoas com hanseníase se acostumam com suas vidas, e a maioria sabe que isso é basicamente o que a vida é. Eles já aceitaram seus destinos. Eles sabem que, mesmo que deixem a colônia, ainda serão estigmatizados, e suas mãos sem dedos os tornariam párias sociais. Anseiam pela felicidade doméstica: um teto e quatro paredes.
 
*
 
Monólogo de Forough em A casa é escura:
 
Quem neste inferno Te louva, ó Senhor? Quem?
Quem neste inferno?
 
cantarei Teu nome, ó Altíssimo.
cantarei Teu nome com um alaúde de dez cordas;
Pois fui feito de uma forma terrível e estranha.
Meus ossos não estavam escondidos
De você quando nasci.
Fui moldado nas entranhas da terra.
 
Em Teu livro as minhas partes já foram escritas.
E Teus olhos, ó Senhor, viram meu feto,
E Teus olhos viram meu feto.
 
Tivesse eu as asas de um pombo,
Voaria para muito longe e assim repousaria.
Iria tão distante e no deserto me refugiaria
Das fortes tempestades e ventanias escaparia.
Pois já vi o sofrimento e o mal na terra.
 
O universo, grávido de indiferença,
Já deu à luz a opressão.
Para onde me abrigar correr
De Teu espírito?
E fugir de Tua presença?
 
Se tivesse asas dos ventos da aurora
e morasse nas profundezas do mar,
Tua mão ainda pesaria.
 
Tu me embriagaras com indecisão.
Quão incríveis são teus feitos,
Quão incríveis são teus feitos!
 
Falo com a amargura de minh'alma
Falo com a amargura de minh'alma
 
Quando estava quieta, minha vida apodrecia
com meus gritos silenciosos todo dia.
Lembra-Te que minha vida é ventania
Tornei-me um pássaro do deserto,
uma coruja das ruínas
E como um pardal, no telhado me sento sozinha.
 
Derramada como a água,
e como àqueles que murcharam de velhos.
Nas minhas pálpebras estão a sombra da morte.
Nas minhas pálpebras estão a sombra da morte.
 
Deixem-me
Deixem-me, pois meus dias serão breves.
Deixem-me antes que eu vá até a terra sem volta,
à terra de total escuridão.
 
Ó, Deus! Não dê a vida de Teu pássaro
Á besta selvagem
Lembra-Te que minha vida é ventania
Tu me destes dias livres.
 
E o som da felicidade ao meu redor,
E o barulho dos moinhos
E as luzes das lâmpadas
Estão destruídas.
 
Abençoados são aqueles
Que apanham a colheita
E com suas mãos
espinham o trigo.
 
Venha ouvir a canção daquele
que canta no deserto.
Diz o canto daquele que sussurra
e suas mãos erga:
"Estou indo! Pois minh'alma
está fraca com as feridas."
 
Ó, a hora dos esquecidos,
Vestidos em rubro,
E com joias douradas,
Que passam kajal em seus olhos.
 
Lembra-te que se fez belo e vaidoso
Para um som num deserto silencioso
E para teus amigos
Que te denegriram.
 
Ai de nós! Pois o dia está no fim
e as sombras noturnas crescem.
Nossa existência é como
uma gaiola cheia de pássaros
Preenchida por lamúrias aprisionadas.
E ninguém entre nós sabe estimar
quanto tempo isso irá durar.
 
A temporada da colheita passou,
E o verão ao fim chegou,
E não fomos libertos.
 
Como pombas, lamentamos pela justiça
Que não existe afora.
Aguardamos a luz,
na escuridão do agora.
 
Ó rio, que transborda pela força do amor,
Venha até nós, venha até nós.
 
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