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"Apresentação dos diretores"
 
O texto a seguir foi tirado do presskit de Família nuclear. Sua versão original, em inglês, pode ser encontrada na íntegra na página do filme criada pela equipe do Arsenal - Institut für film und videokunst e.V.: Nuclear Family.
O filme anterior de Travis Wilkerson realizado em Sand Creek, ao qual ele faz referência no texto, pode ser visto na página de Vimeo do cineasta.

 
Travis Wilkerson: É curioso olhar para Família nuclear agora, na sombra de tudo o que aconteceu desde que começamos a fazê-lo. Suponho que o apocalipse estava no horizonte. Mas todos nós já cruzamos esse horizonte. O apocalipse está atrás de nós, na nossa frente, e também estamos no apocalipse. De certa forma, o filme está inteiramente em sintonia com essa realidade. Embora tudo isso veio por acidente.
 
Passamos meses nos preparando para nossa viagem de carro. Traçamos um caminho, baseado em "nós" de destruição - silos nucleares, fábricas de armas, laboratórios, academias e bases militares. Neste ponto, o filme foi realmente monótono na concepção. Sempre nos esforçamos para conectar elementos aparentemente isolados, mas que na verdade eram totalmente entrelaçados - trabalho e catástrofe ecológica, por exemplo, ou agricultura e colonialismo. As conexões são quase sempre mais poderosas, mais essenciais, do que imaginamos. Mas, de alguma forma, não tínhamos feito esse tipo de conexão neste caso. Estávamos concebendo o militarismo dos EUA como uma espécie de singularidade, um absolutismo. O que é, e também não é. Nos primeiros dias da viagem, achei desafiador começar a fotografar. Eu não sei porquê. Imagino que tenha a ver com essa falta existencial. Eu sabia que algo estava faltando. Eu não sabia o quê. E eu não queria ligar a câmera até saber o que e porquê.
 
Erin Wilkerson: Mas já estávamos bem na estrada com nossos filhos, nosso cachorro e nosso trailer de viagem que chamamos de "Nelly", e eles estavam adorando explorar. Seguimos vagalumes em terrenos ainda lamacentos devido a grandes e incomuns inundações meses antes, em Illinois. Em nossa primeira parada em Iowa, na beira de um milharal perto de turbinas eólicas, paramos para esticar as pernas e encontramos centenas de borboletas, com as asas rasgadas e esfarrapadas, espalhadas sem vida pelo chão. Seguimos para um acampamento, também apoiado em talos de milho, onde poderíamos nadar e pendurar uma rede em duas velhas árvores. Nossa viagem de carro - aquela clássica norte-americana - começou permeada por lembretes inevitáveis de calamidade.
 
TW: E então decidimos que as primeiras filmagens seriam em um silo de mísseis, do outro lado da fronteira entre Nebraska e Colorado, em homenagem ao ex-senador de Colorado, Tim Wirth.
 
Na década de 1980, abandonei o ensino médio e fui trabalhar na campanha política de Wirth para um grupo chamado Freeze PAC. Na essência, estávamos trabalhando para pressionar figuras políticas dos E.U.A. a apoiar um "congelamento" na construção de armas nucleares. A noção era que esse congelamento lançaria as bases de um eventual desarmamento. E que o caminho para esse congelamento era trabalhar dentro do sistema, para apoiar os democratas e "pressioná-los" a trair sua essência como representantes do partido burguês mais antigo do mundo ocidental. Foi um sonho, com certeza. E, claro, fracassou completamente. De alguma forma, a ideia de filmar em um silo com o nome da personificação daquela estratégia política fracassada parecia a maneira de tirar a poeira do meu impulso criativo e impulsionar o projeto.
 
Mas esse plano foi exatamente tão eficaz quanto a estratégia política original. Literalmente, no momento em que entramos no Colorado, o carro começou a fazer barulho. Em pouco tempo, o motor pifou completamente. Mais tarde, descobrimos que tivemos uma sorte incrível, pois a falha do motor dessa marca e modelo em particular estava propensa a explodir em chamas. Já aconteceu centenas de vezes. Mas naquele momento tudo o que sabíamos era que estávamos presos como uma família na beira da estrada no leste do Colorado, no dia 4 de julho, tentando descobrir o que diabos fazer.
 
Nós finalmente conseguimos rebocar o carro para a cidade mais próxima - Julesburg - onde nos registramos no único hotel, sentindo-nos esgotados e tristes, enquanto esperávamos notícias sobre o carro. O que aconteceu em vez disso é que começamos a filmar - a piscina havia sido fechada para reparos, a cidade estava totalmente fechada e não tínhamos literalmente mais nada para fazer. E essa filmagem - por motivos quase místicos - moldou a totalidade do projeto.
 
EW: E foi aí que encontrei um pequeno mochileiro, um carrapato, rastejando pela minha pele sob minha camisa. Enquanto esperávamos pelo reboque, eu tinha caminhado pela pradaria ao longo da estrada com as crianças. As peras espinhosas estavam floridas, e suas flores, bastante delicadas para um botânico tão robusto e farpado, duram tão pouco. Eu sabia que as pradarias também estavam sendo invadidas por plantas estrangeiras. Eu costumava trabalhar com arquitetura paisagista e ainda tenho interesse pelo uso do solo, revitalização e sincronicidades das plantas indígenas. Elas contam histórias de invasão, movimento e migração, de cura milagrosa e morte súbita. Essas imagens lembravam as antigas pinturas de paisagem que representam o país como vasto e sem fronteiras, livre de habitantes, livre para construir, para tomar. Propaganda de apoio ao assentamento que ainda paira orgulhosamente em nossos museus e instituições.
 
Aquele carrapato foi um lembrete de que não existimos fora da narrativa de invasão de colonos nos Estados Unidos, que nossa história e ancestralidade também fazem parte dessa história.
 
TW: De todos os lugares onde poderiamos nos encontrar presos, acabamos em Julesburg. A cidade é sombria e basicamente morta. Era uma cidade de fronteira, mas a fronteira há muito saltou sobre a cidade. É principalmente agrícola agora, mas, como muitas pequenas comunidades agrícolas na zona rural dos E.U.A., está em péssimas condições. O grande agronegócio não está muito interessado e as plantações de beterraba não são o que costumavam ser.
 
Mas sua história de assentamento tem uma estranha convergência com meus próprios interesses e meu passado cinematográfico.
 
Por volta de 2010, filmei em um lugar chamado Sand Creek, muito mais ao sul, mas também ao longo da cordilheira leste do Colorado. Em 1864, foi o local do pior massacre de povos nativos - os Cheyenne e Arapaho - pela Cavalaria do Colorado na história da região. É uma história muito cínica. Essencialmente, os líderes tribais estavam tentando evitar conflitos com os colonos brancos e perguntavam onde eles poderiam acampar e caçar em paz. Eles foram informados de que Sand Creek era aceitável, desde que hasteassem uma bandeira branca e uma bandeira dos E.U.A. sobre o acampamento, o que eles fizeram. Mas as forças do Colorado, que eram lideradas por uma figura agora infame chamada John Chivington, ficaram todas embriagadas, então usaram aquelas bandeiras como marcadores e entraram, massacrando toda a aldeia. Ninguém sabe exatamente quantos foram mortos, mas foram pelo menos centenas e, como um grande grupo de caça partiu para encontrar comida, as vítimas eram principalmente mulheres, crianças e velhos.
 
Esse massacre é bastante fundamental na história do Colorado. Em certo sentido, o massacre lançou as bases para a criação do estado, cerca de 20 anos depois. Era um pré-requisito. Também é estranhamente existencial. Colorado continua a ser o estado do tiroteio em massa. É difícil explicar essa conexão e difícil negar.
 
Mas o que tudo isso tem a ver com Julesburg? Bem, após o massacre, os Cheyenne e Arapaho sobreviventes se organizaram em unidades "militares" e iniciaram uma guerra de retribuição - uma guerra que eles perderam. E essa "guerra" começou em Julesburg. No entanto, como o filme deixa claro, os Cheyenne e Arapaho tinham uma ideia de vingança muito diferente da dos colonos brancos.
 
Sem nenhuma intenção clara, o carro quebrando de repente naquele lugar, naquela hora, a caminho daquele silo com o nome de um senador para quem eu trabalhava para tentar acabar com uma guerra que felizmente ainda não chegou, nos ajudou acompreender a relação fundamental entre a chegada de colonos brancos, a destruição da cultura indígena, comunidade e ecologia no Ocidente, militarismo dos E.U.A. e guerra nuclear. As conexões são tão claras. Mas de alguma forma, nós simplesmente não podíamos vê-las. Isso é o que os acidentes às vezes podem fazer. E é isso que nosso filme está tentando transmitir.
 
Conquiste a terra com uma arma. A terra se torna a arma. Aponte a arma na cabeça de todos.
 
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