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"Khesht o Ayeneh [Tijolo e espelho]"
 
O texto a seguir foi originalmente escrito em inglês por Ebrahim Golestan e publicado em 2018 no presskit da versão restaurada de Tijolo e espelho, na ocasião do lançamento da restauração na mostra Venice Classics, no Festival Internacional de Cinema de Veneza.  Embora o filme tenha dois nomes válidos em persa - Khesht va Ayeneh ("O tijolo e o espelho") e Khesht o Ayeneh ("Tijolo e espelho") - Golestan expressa preferência pelo título menos formal. Agradecemos Mitra Farahani, da Écran Noir Productions, e Carmen Accaputo, da Cinemateca de Bolonha, por disponibilizar o presskit.
 
O título deste filme foi retirado de versos encontrados em um poema de Attar, um poeta persa que foi morto em um massacre durante a invasão mongol do Irã no século XIII. O verso do qual tirei o título diz: "O que o Jovem vê no espelho, o Velho vê no tijolo de lama". A citação foi usada não apenas para sugerir que os detalhes da história que se desenrola são um reflexo da situação dura e difícil da sociedade que o filme retrata - ou melhor, insinua. Mas também, pretendia chamar a atenção para os detalhes que existem em paralelo, apenas um aspeto ou dimensão menos visível, com um significado estranho, mas presente, e quase complementar ao que está acontecendo, como dois instrumentos musicais diferentes tocando notas e tonalidades distintas para produzir ar ou um som complexo para ouvir ou expressar.
 
O objetivo era expressar uma sugestão material do significado mental, voltado para o exterior, do que está planejado para ser mostrado ou está acontecendo. É um empreendimento misto e composto, e deve ser deixado para ser visto e sentido dessa maneira, sem nenhum relato ou explicação verbal separados, ou sugestão em voz alta ou pressão para forçar a compreensão do espectador. É deixado e depositado ali sem ênfase, como alguns fios coloridos em um tecido, ou nós na confecção de tapetes, que não são identificados ou mostrados singularmente, isoladamente, apenas como fios ou nós particularmente coloridos que estão lá para ajudar a compor uma imagem ou um padrão.
 
Para um filme que foi realizado em oposição à melhor, e seguramente mais útil, maneira de seguir um texto pré-determinado e com um número muito maior de operadores e assistentes prestativos, uma descrição de como foi sua realização há cerca de cinquenta e cinco anos, no meio das circunstâncias sociais mais difíceis, talvez pudesse soar interessante, embora de pouca utilidade. Portanto, aqui parece suficiente tratar de alguns pontos que podem escapar à atenção daqueles que estão acostumados a formas mais organizadas e práticas que se tornaram e são o medidor e o padrão na produção de filmes.
 
Algumas dicas já foram dadas sobre as ideias que eu tive e usei em algum tipo de expressão paralela, em uma espécie de forma gêmea e montada paralelamente, com uma parte meio escondida e outra explicitamente apresentada para ser testemunhada, ambas reunidas em uma unidade coletiva - e, assim, expressarem-se como uma única imagem, aquela pretendida. É a única visão geral, aquela que o olho deve ver, a integridade do padrão que se busca. Esta ideia, este método de trabalho, este esquema ou modo de funcionamento, que aqui se explica talvez com um número maior que o necessário de palavras, foi utilizado de diversas formas e de maneiras distintas, com diferentes materiais em diferentes partes do filme, conforme sua execução. Por exemplo, os sons do rádio no filme - seja o rádio no táxi do motorista, ou mais adiante na história, um aparelho em uma prateleira de seu quarto - pretendiam, de certa forma, funcionar como se fossem o som e as palavras do coro em peças clássicas tradicionais. No táxi, quando o motorista liga o rádio, ouvimos a narração de um texto "literário", bastante abstrato, que funciona como um relato do estado vigente da sociedade através de uma descrição simbólica de uma floresta escura e um predador caçando no escuro. Como dito antes, o rádio continua a cumprir sua função com uma série de comerciais estrondosos, novamente funcionando em paralelo, repetindo seu papel de coro para um outro lado ou aspecto da história que está se desenrolando. Na terceira vez que o taxista gira o botão, é uma peça histórica que se ouve - com o mesmo objetivo de retratar de forma difusa as características de uma determinada sociedade. Tudo isso sem nenhuma ênfase em especial.
 
O filme então entra em uma nova fase, sobre uma mulher que deixou uma criança em um táxi, ou melhor, sobre uma criança que foi deixada em um táxi por uma mulher. Em sua busca pela mulher, o motorista chega a um canteiro de obras abandonado e inacabado, onde agora, nosso coro é uma mulher que descreve essas quase ruínas que são a morada de alguns indigentes. A mulher-coro lamenta sobre os muros que "estão subindo por toda parte" e "cercando tudo, todos em todos os lugares". E quando, no final deste episódio, o motorista vai para o seu carro como que para se refugiar, um grupo de cães de rua, emergindo da escuridão desolada, o seguem latindo, novamente um paralelo que não é referido em voz alta. Existe para o espectador sentir. O motorista parece desesperado e pensativo, assediado pelos latidos contínuos no lado de fora das janelas fechadas de seu carro, até que as gotas de chuva batendo no para-brisa o lembram de que ele precisa seguir em frente, agora que sua busca pela passageira sombriamente desconhecida e perdida não trouxe resultado. Ele fica com o bebê, seu turno de trabalho está acabando e o carro deve ser levado para o próximo motorista, que o espera.
 
O ponto de encontro deles é um bar-restaurante cheio de pessoas variadas, com entretenimento de dois músicos provincianos e uma cantora pouco apreciada pelo público - tal como ela que não os aprecia. O motorista, com o bebê no braço, entra para entregar a chave do carro ao próximo motorista do turno, que está zangado porque a chave lhe foi entregue tão tarde. O motorista então se junta aos amigos em uma mesa diferente. Aqui o grupo de amigos pode parecer estranho, até mesmo não realista para alguns espectadores de hoje, mas era chique até então, no início dos anos 60, para o grupo emergente de "intelectuais" se misturar com certas pessoas de outras classes, especialmente da classe média baixa. Outra expressão do paralelo.
 
O filme não foi feito a partir de um roteiro preparado e completamente escrito. Eu havia colocado no papel apenas notas para alguns dos diálogos das cenas que havia visualizado ou pensado. Para mim, as palavras ditas nos filmes tinham valor e impacto essenciais, quase iguais às imagens. Alguns dos diálogos eram os pontos principais do empreendimento, e tinham que ser ensaiados um pouco antes das filmagens, principalmente para verificar e medir a adequação das palavras que estavam nos textos e a capacidade particular do ator de interpretá-las, a fim de torná-las totalmente espontâneas, corretas e pessoais. O diálogo escrito pode soar diferente quando falado por pessoas diferentes. Arranjos de palavras preparados e pensados não eram considerados imutáveis em sua forma completa e final quando a filmagem realmente estava para começar. Isso foi, é claro, apenas em relação a alguns diálogos que deveriam conter uma parte especial das palavras combinadas para dar certa ênfase, significado ou sensação. Isso ocorreu para manter a forma e o som das frases elaboradas, quando finalmente faladas, soando estrita e rapidamente espontâneas, rotineiramente rápidas, rotineiramente parecendo pessoal e pertencente a esse personagem em particular. E não empoladas como em certos diálogos treinados e ensaiados profissionalmente - sejam murmúrios ou gritos.
 
Ensaiado, sim, mas sem ares de ter passado por um certo processo de "calcificação". Eu queria ver o quão memoráveis minhas palavras escritas poderiam ser para aquele ator em particular na busca por uma expressão espontânea da fala que deveria ser proferida. Para conseguir isso e evitar as armadilhas, deixei o homem na sequência do tribunal, que diz ao motorista para esquecer o bebê e não gastar seu bom dinheiro exceto em suas bebidas prazerosas, ler suas falas do texto, escondidas da câmera. Ou tive que escrever novas falas para o médico na delegacia de polícia, pois era estranho e difícil para ele agir com o tipo de ar e tom blasé que eu queria. Em vez disso, mudei seu personagem para um homem impaciente, nervoso e raivoso, e escrevi novas falas com o ator permanecendo o mesmo. Eu sabia que não seria fácil com os atores. Alguns nunca haviam atuado, nem em um palco, nem diante de uma câmera. Alguns já haviam atuado, com deficiências desconsideradas ou despercebidas, consequentemente tornando-se hábitos e modos normais. Mas os atores eram dispostos e colaborativos. Mesmo assim, a teatralidade era o que eu não gostava e evitava, exceto quando queria mostrar seu aspeto ridículo.
 
Eu sempre tive essa visão e a usei, de alguma forma, nas imagens e na narração de todos os filmes que fiz - ou como o motivo por minha decisão de deixar um trabalho para me concentrar no cinema. Eu já a havia acompanhado na produção de meus documentários e curtas sobre vários assuntos, incluindo facetas da indústria do petróleo - desde um incêndio destrutivo e colossal em um poço de petróleo [Um fogo] até a construção dos maiores terminais de petróleo com o oleoduto de maior diâmetro, que se estendiam pelas barreiras das altas montanhas e através do turbulento mar profundo [Onda, coral e rocha]. Em alguns momentos, consegui escapar das consequências do que mostrei e disse - curiosamente - por autoridades com entendimento diferente, independentemente dos assuntos particulares dos filmes, desde o petróleo e sua indústria até a descoberta de um importante e vasto tesouro de objetos arqueológicos [As colinas de Marlik]; as incomparáveis joias da coroa do Irã [As joias da coroa iraniana]; a vida em uma colônia de pessoas com hanseníase [A casa é escura]; reformas agrárias [Colheita e semente]; a uma apresentação de desenvolvimentos e progressos industriais [Namayeshgah-e bazargani / The Commercial Expo of Iran, 1967]. Não elogios, mas expressões de preocupação com o destino e a fortuna de uma nação e um grupo de seres humanos pertencentes a três milênios de história que formaram um país multilíngue com grande expressão cultural na poesia e na ciência, comunicada em sua única língua chamada persa e vivendo sob várias formas de tirania, opressão, guerras e invasões, e a calamidade constante do roubo de muitas partes de suas terras e trabalhos.
 
Tudo isso sem qualquer ênfase em especial ou em voz alta, como quando os bilhetes de loteria são arrancados e jogados fora do menino vendedor de bilhetes no bar-restaurante, mostrados como uma cena comum, sem zoom ou close do incidente; e quando se ouve o tique-taque do relógio da delegacia, com seu pêndulo balançando sem que nenhum ponteiro indique as horas; e quando as luzes e os jatos de água no logradouro se apagam enquanto a protagonista sente pela primeira vez o desespero neste momento de sua história; e quando o retorno de suas esperanças coincide com os portais iluminados de um lugar "sagrado"... Estamos em um mundo de separações e visões paralelas, para ver a passagem de um cortejo fúnebre, através das esperanças e aspirações minguantes, com um vento forte soprando, no final distante da estrada; a fileira de potes de vidro contendo fetos que decoram a sala da diretora do orfanato, ao lado do retrato da autoridade governante; a recitação gemida de supostos versos sagrados na sala fechada e dominada pelo medo, de onde o amor está saindo - tudo isso e mais discretamente mostrado nas margens para o espectador detetar e sentir.
 
E assim por diante, sem maiores ênfases nesses pontos aqui, também.
 
MUTUAL FILMS