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"Uma entrevista com Cecilia Mangini"
 
O que seguem são trechos de uma entrevista com Cecilia Mangini que foi conduzida por Gianluca Sciannnameo e publicada em 2006 em italiano, em uma versão de mais de 5.000 palavras, no livro Nelle indie di quaggiù: Ernesto De Martino e il cinema etnografico [Nas Índias daqui: Ernesto De Martino e o cinema etnográfico], uma coletânea de textos sobre o celebrado etnólogo italiano Ernesto De Martino (1908-1965), que exerceu uma importante influência sobre a obra da cineasta. O texto original e uma tradução para inglês (feita por Livia Franchini) podem ser encontrados no site Another Screen - A One-Woman Confessional: Eight Films by Cecilia Mangini.
 
Gianluca Sciannameo: O que você estava fazendo antes de conhecer o antropólogo Ernesto De Martino, e como era sua relação com ele? Que influência teve sobre seu trabalho, nas escolhas temáticas e na abordagem das diferentes situações que documentou? Que tipo de pesquisa e linha de investigação a levou a desenvolver um interesse pelo Sul da Itália?
 
Cecilia Mangini: Algumas premissas necessárias: nesta entrevista, muitas vezes vou me referir a "nós", para falar de mim e de Lino Del Fra. Compartilhamos nossa vida e filmes, nós mesmos e documentários, às vezes com as assinaturas de nós dois, às vezes não. Eu estarei falando sobre Lino, veja bem, não em nome dele.
 
Stendalì (ainda soam) foi o terceiro documentário que dirigi, depois de Desconhecidos para a cidade e Firenze di Pratolini (1959, Florença de Pratolini). Realizados no final dos anos 50 - uma década marcada pela agonia, morte e enterro nada cerimonioso do neorrealismo - estes filmes devem ser interpretados, no seu conjunto, como uma expressão precoce da rejeição do fundamentalismo democrata-cristão ("um grande não", como Ernst Toller coloca) que se enraizou na Itália depois de 18 de abril de 1948. Novos heróis eram necessários para afastar a ameaça de uma invasão cossaca em San Pietro, e esses heróis estavam prontos para sacrificar qualquer coisa - exceto o poder - para proteger o país. Um deles foi o jovem Giulio Andreotti [1919-2013, um político democrata-cristão] que ocupou o cargo de subsecretário de Estado por muitos anos, e como tal era responsável por cinemas, teatros, salões de dança e entretenimento, já que nenhuma função ministerial específica abrangia essas áreas, como ocorre ainda hoje. Naquela época, ele estava longe de ser o piadista charmoso e complacente que conhecemos - nos anos 50, Andreotti era um líder ousado e arrogante. Não acredite na narrativa pública de reabilitação dos democratas-cristãos que os apresenta como defensores moderados da democracia. Aqueles foram os anos em que um fundamentalista da Democracia Cristã como Oscar Luigi Scalfaro esbofeteou publicamente uma mulher por usar roupas que considerava indecentes; os mesmos anos em que o bispo fundamentalista de Prato excomungou um jovem casal por ter escolhido casar-se numa cerimônia civil ao invés de católica, levando os bancos a deixar de negociar com o noivo, cujo pequeno negócio têxtil faliu - tal como o próprio noivo, que morreu de um ataque cardíaco logo depois. Foram os anos em que Mario Scelba, o Ministro do Interior e fundamentalista, cunhou uma nova palavra para descrever os intelectuais tout court: "culturame" ["cultive-me"], significando uma mercadoria barata, grosseira e desprezível.
 
Nesse contexto, o cinema representou um dos campos de batalha mais disputados. O filme Totò e Carolina (1955), de Mario Monicelli, sofreu 85 cortes devido à censura. Vittorio De Sica foi caluniado publicamente por Andreotti por sua incapacidade de manter os negócios de sua família a portas fechadas, onde pertencia. Pier Paolo Pasolini foi levado a julgamento pelo fundamentalista Ferdinando Tambroni por seu "romance obsceno" Meninos da vida (1955, Ragazzi di vita). A mesma coisa aconteceu com Renzo Renzi para L'Armata s'agapò, um roteiro inofensivo sobre os casos de amor que os soldados italianos tiveram quando foram enviados para a Grécia durante a Segunda Guerra Mundial; tanto Renzi quanto o crítico de cinema Guido Aristarco, que o publicou na revista Cinema Nuovo, cumpriram pena na prisão militar de Peschiera como consequência. Até meu próprio documentário Desconhecidos para a cidade, que não tinha nada de ameaçador, foi banido, devido à censura.
 
Vale lembrar, também, que o gênero de documentário era mais valorizado naquela época do que hoje, quando é considerado um miserável subproduto cinematográfico. O próprio cinema foi inventado documentando um trem fazendo sua entrada triunfal em uma estação e contava com diretores como Dziga Vertov, Joris Ivens, Walter Ruttman, F. W. Murnau, Robert Flaherty, Luis Buñuel, Jean Vigo, John Grierson e Paul Rotha entre seus pais fundadores. O código genético do documentário dependia - e, felizmente, ainda depende- de três liberdades fundamentais: liberdade de expressão, de investigação e de experimentação. Tínhamos essas três liberdades, e como deveríamos canalizá-las, senão através da difícil busca do realismo como uma reação contra aqueles tropos populistas sentimentais que, por meio da catarse, retratavam os problemas de nossa sociedade como condições de vida inescapáveis e fatais?
 
Aliás, uma pequena digressão: minha família, por parte de pai, vem do Sul da Itália. Entre as imagens que carrego comigo desde a infância estão as paisagens dilapidadas e esquecidas da Puglia: crianças descalças, tracoma, as costas quebradas de trabalhadores rurais, mulheres tristes vestidas de preto do luto, dialeto falado como uma declaração de identidade e parentesco. Essas memórias pessoais desempenharam um papel? Ou só os entendi, dei-lhes sentido, depois de ler Antonio Gramsci - um pensador do Sul? Que papel desempenhou a descoberta da hegemonia do Norte sobre o Sul da Itália? (O Norte como polvo, alimentando-se do Sul; o Sul reduzido a um mercado semicolonial, suas fortunas burguesas drenadas pelo Norte.)
 
Espero que esteja claro o que quero dizer quando digo que foi Gramsci quem nos proibiu de produzir documentários folclóricos sobre a pobreza do Sul, a espetacularização dos trapos, a exaltação dos fazendeiros à condição de figuras sagradas em um presépio napolitano. Trabalhar com Ernesto De Martino foi essencial para fazer reportagens sobre o Sul da Itália. Nosso primeiro encontro aconteceu quando Morte e pianto rituale nel mondo antico, o livro que inspirou Stendalì, foi publicado. Depois, foi a vez de Sud e magia (1959, Sul e magia) e La terra del rimorso (1961, A terra do remorso). No entanto, os ensinamentos de De Martino tiveram efeitos muito mais amplos em nosso trabalho, além de delinear as coordenadas etnológicas de um Sul que fascinou muitos de nós documentaristas. Ele forneceu um quadro epistemológico que nos exortou a descascar as camadas da cultura, ele promoveu uma compreensão dos fenômenos como ocorrências complexas e nos conscientizou da importância da análise interdisciplinar. Embora a concepção de De Martino do fenômeno mágico como uma evocação de proteção psicológica em resposta às ameaças malignas da vida cotidiana nos fascinasse, talvez sua ideia mais influente para nós fosse sua afirmação (com referência a Claude Lévi-Strauss) de que o interesse pela etnologia surgiu "da escolha radical de desafiar um sistema no qual nascemos e crescemos". Mas também foi a força motriz por trás de nossa escolha de fazer filmes, de ficar atrás da câmera.
 
De qualquer forma, nosso trabalho em Stendalì, A paixão do grão e L'Inceppata (1960, O encravado) influenciou o que veio depois. O quadro epistemológico que mencionei nunca esteve totalmente ausente do nosso trabalho: para dar um exemplo, Fata Morgana (1962) e Come favolosi fuochi di artificio (1967, Como fabulosos fogos de artifício), filmados por Lino em 1962 e em 1967, e meus filmes O canto da margem, Tommaso e Felice Natale (1964, Feliz Natal) todos se basearam nessa experiência anterior. Embora não produzíssemos mais documentários etnológicos, continuamos essencialmente alinhados à filosofia de De Martino.
 
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Sciannameo: Todos os acontecimentos em seus documentários são encenados? Quanto do que está registrado nos filmes ainda estava acontecendo na época? Você escolheu enfatizar quais elementos em suas interpretações cinematográficas do mundo ritualistico?
 
Mangini: Os acontecimentos em Stendalì, A paixão do grão e L'inceppata são todos encenados - ou melhor, reencenados, após períodos de muita pesquisa e estudo cuidadoso, nos quais colocamos em primeiro plano os elementos de estilização que são centrais em todos os rituais.
 
Esses rituais ainda estavam em andamento? De todas as aldeias de língua grega em Salento, as lamentações de luto persistiram apenas em Martano, como uma tradição cujos últimos repositórios foram as mulheres que registramos no filme, interpretando a si mesmas. As mulheres estavam cientes disso, tanto que me disseram: "Quando nós partirmos, as lamentações também partirão." Se elas ainda praticavam isso? Não tenho certeza, mas imagino que se sim, teriam sido em homenagem à Nunziata e à Filomena, as mais velhas entre elas. O mesmo vale para A paixão e L'inceppata, embora, realmente, um etnólogo deva ter a última palavra sobre esses assuntos. A ideia que tive foi que os anciãos dessas comunidades estariam "se defendendo das ameaças malignas da vida cotidiana" por meio de atos como lamentações, o ritual da foice ou o ritual da tora de noivado. Seus filhos teriam testemunhado esses rituais com frequência suficiente para memorizá-los antes de desaparecerem, participando apenas ocasionalmente. Seus netos tinham apenas uma lembrança vaga e fantasmagórica deles. Seus bisnetos os terão esquecido completamente. É difícil apontar a hora exata da morte dos rituais mágicos. Seus assassinos, porém, são conhecidos: a televisão, a condição social e o consumismo.
 
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Sciannameo: O que os motivou a continuar a voltar para o Sul? Você e Lino fizeram quais outros trabalhos após Stendalì?
 
Mangini: Lino e eu não fomos para o Sul apenas para fazer documentários etnográficos.
 
Voltamos para filmar Ser mulher e conhecer as mulheres que trabalhavam nos campos, tabagistas e aquelas que migraram para o Norte em busca de trabalho nas fábricas, na esperança de uma vida melhor.
 
Em Fata Morgana documentamos a chegada de retirantes do Sul a Milão durante os anos do chamado "milagre econômico" na Itália. Nós os filmamos descendo do trem carregando suas caixas de papelão e malas amarradas com barbante, e os seguimos enquanto eles lutavam para se estabelecer na cidade, mal pagos e segregados no chamado 'coree'. [Comunidades precárias para trabalhadores pobres do Sul]
 
Com o filme Brindisi '65 (1966, assinado por Mangini), documentamos o impacto da recém-construída planta petroquímica Monteshell - uma verdadeira catedral no deserto - na cidade de Brindisi, e como ela gerou uma nova classe trabalhadora local, com operários selecionados para a fábrica não com base no mérito, mas por recomendação de eminentes personalidades políticas.
 
Para Tommaso, acompanhamos um menino local em suas corridas de lambreta, enquanto persegue seu sonho de se tornar um funcionário da fábrica Monteshell em Brindisi. Para a série Comizi d'amore '80 (1982, assinado por Del Fra), visitamos trabalhadores da fábrica Italsider em Taranto, que estavam avaliando a evolução da política de gênero que o modelo de trabalho fabril havia desencadeado, e conversamos com mulheres de Lecce sobre as leis em torno do aborto.
 
Para Domani vincerò (1969, uma série de dois capítulos assinada por Mangini), conhecemos jovens homens e meninos da Sardenha nascidos em famílias sulistas nas cidades do centro e Norte da Itália, que buscavam escapar da pobreza e da marginalização por meio do boxe. Esses boxeadores amadores viam a luta como um caminho potencial para subir a escada social e econômica e nos contaram tudo sobre seus "sonhos de glória e vingança".
 
Poderíamos ter feito ainda mais para o Sul. Infelizmente, a inflação continuou crescendo ano a ano - para 15%, depois para 18%. O valor do prêmio em dinheiro disponível, no entanto, permaneceu o mesmo - o Ministério nunca o atualizou para cima. Então foi adeus à filmagem de documentários - no Sul, no Norte, em qualquer lugar exceto Roma, dificilmente alguém poderia se aventurar além do anel viário. Os custos para trabalhar com película dobraram, então mudamos para 16 mm e depois ampliamos para 35 mm quando fomos fazer a cópia. No final, nossos horários de exibição foram reduzidos. Tudo o que restava a dizer era adeus.
 
Tivemos tantos Ministérios da Cultura ao longo dos anos. Tantos ministros diferentes ocuparam seus escritórios na Via della Ferratella ou no Collegio Romano desde os anos setenta. Quantos deles levantaram um dedo para salvar o documentário italiano? A resposta é zero.
 
Então deixe-me terminar esta entrevista lembrando a idade de ouro do documentário. De A a Z, alguns diretores que começaram como documentaristas: Michelangelo Antonioni, Marco Bellocchio, Bernardo Bertolucci, Alessandro Blasetti, Luigi Comencini, Lino Del Fra, Carlo Di Carlo, Luciano Emmer, Giuseppe Ferrara, Andrea Frezza, Ugo Gregoretti, Alberto Lattuada, Marco Leto, Carlo Lizzani, Francesco Maselli, Gianfranco Mingozzi, Elio Petri, Dino Risi, Nelo Risi, Roberto Rossellini, Paolo e Vittorio Taviani, Florestano Vancini, Carlo Verdone, Valerio Zurlini.
 
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