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O Líbano de Heiny Srour e Jocelyne Saab

 
IMS PAULISTA
 
08/10/2025 (quarta)
19h30
A Trilogia de Beirute

 
09/10/2025 (quinta)
19h
Leila e os lobos
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As crianças da guerra
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debate com Carol Almeida
 
11/10/2025 (sabado)
19h40
A Trilogia de Beirute
 
12/10/2025 (domingo)
17h30
Leila e os lobos
+
As crianças da guerra

 

Devemos começar com a criação deste país. Em um país, os cidadãos se encontram por meio de uma aliança a uma constituição. Mas a constituição libanesa glorificou as divisões entre crenças religiosas. Isso se tornou uma virtude. Assim, todos construíram sua identidade em torno de seus pertences religiosos, mesmo sem praticar a própria religião. A identidade do indivíduo se confunde com sua crença religiosa.
 
- De uma entrevista com a poeta e jornalista Etel Adnan no filme Líbano em turbulência (Le Liban dans le tourmente, 1975), dirigido por Jocelyne Saab
 
De Dófar ao Vietnã, passando por Líbano, Palestina e Egito, sempre me vi do lado do Davi do momento contra o Golias das circunstâncias. Pois, mesmo na Bíblia, o adorável pastorzinho que derrota brilhantemente o monstro de ferro, armado apenas com sua fé e seu estilingue, abusa de seu poder ao se tornar rei... E é severamente repreendido por seu Senhor, uma vez que “o Eterno está sempre ao lado dos oprimidos”.
 
- Heiny Srour, no texto “Between Three Stools” (“Assise entre trois chaises”), de 1998[1]
 
Com o fim do Império Otomano, depois da Primeira Guerra Mundial, parte do Oriente Médio foi dividido entre a França – com o controle do Líbano, da Síria, do sudeste da Turquia e do Curdistão – e o Reino Unido, com a Palestina, a Jordânia e o sul do Iraque. No Líbano, o mandato francês durou até 1943, quando a independência do país foi proclamada com a criação de um Pacto Nacional, através do qual se instaurou um governo confessionalista, dividido formalmente entre lideranças religiosas. Utilizando um censo realizado em 1932, quando a região ainda estava sob domínio francês, estipulou-se que, obrigatoriamente, o presidente e o comandante do exército seriam cristãos maronitas, o primeiro-ministro seria muçulmano sunita, o porta-voz do parlamento, xiita e o primeiro-ministro do parlamento, grego ortodoxo.
 
A cineasta e socióloga libanesa Heiny Srour nasceu em março de 1945, pouco antes do fim da Segunda Guerra Mundial e dois anos depois da independência do Líbano. Nessa época, o país vivia uma estabilidade socioeconômica relativa, na qual, apesar da grande desigualdade social, havia um crescimento econômico exponencial, concentrado principalmente na capital Beirute, que se tornou o que muitos chamaram de “a Paris e a Suíça do Oriente Médio”, tanto pelo grande fluxo e estrutura para o turismo quanto por ser o polo bancário da região. Assim como o Líbano, a família de Srour era uma construção multirreligiosa, sendo a mãe uma aristocrata egípcia muçulmana, o pai judeu ortodoxo e tios e tias protestantes e católicos. Essa pluralidade, de acordo com Srour, pavimentou seu pioneirismo ao oferecer-lhe um “pensamento estratégico” e a capacidade de olhar para além dos muros das religiões. “O que era normal ou sagrado para meus tios ou tias cristãos e muçulmanos era um anátema ou até mesmo uma blasfêmia para nossa família judia, e vice-versa”, disse ela anos depois.[2]
 
Em 1948, estourou a Primeira Guerra Árabe-Israelense, em decorrência da fundação do Estado de Israel, que provocou um influxo de cerca de 100 mil refugiados palestinos para o Líbano, cujo governo havia indiretamente apoiado os estados árabes no conflito. (Este número cresceu para 500 mil ao longo das décadas seguintes.) A cineasta e jornalista libanesa Jocelyne Saab nasceu em abril de 1948, duas semanas antes do início da guerra, em uma família cristã maronita abastada. Apesar do desejo desde cedo de se expressar através de imagens, Saab submeteu-se à exigência da sua família, que não aceitava o cinema como uma profissão para mulheres. Ela então seguiu os passos do pai, um importante homem de negócios no Líbano, e estudou economia em universidades no Líbano e na França, sendo a língua francesa a da sua formação. Anos depois, Saab lembrou: “Por natureza, sou uma pessoa mais instintiva do que reflexiva, mas existe um certo rigor nos meus filmes que eu herdei da maneira de pensar instilada em mim quando estudei economia.”[3]
 
Após concluir seus estudos na Sorbonne, Saab trabalhou como correspondente no Oriente Médio para a televisão francesa. Ela se destacou por sua capacidade de entrar em zonas de conflito e engajar com uma grande diversidade de participantes. Ao longo de uma série de curtos documentários que dirigiu entre 1970 e 1975, ela conseguiu cobrir a guerra do Yom Kippur entre Israel, Egito, Síria e Iraque, realizar filme-retratos sobre Muammar al-Gaddafi na Líbia, acompanhar a participação das mulheres palestinas como fedayins e registrar comandos suicidas palestinos dando voz aos seus motivos, em um momento em que o sul do Líbano serviu como sede para a OLP (Organização para a Libertação da Palestina). Saab transmitiu empatia para com seus personagens, ao mesmo tempo que deixou evidente seu próprio posicionamento político: uma humanista liberal com ceticismo sobre as consequências de qualquer luta armada.
 
A tensão política no Líbano aumentava gradualmente, até que, em abril de 1975, um massacre de palestinos em um ônibus em Beirute por forças falangistas cristãs provocou o início da Guerra Civil Libanesa. De um lado, estava a coalizão cristã; do outro, os muçulmanos, drusos e palestinos. A guerra durou 15 anos, em várias fases, e resultou na morte violenta de mais de 150 mil pessoas e o exílio de mais de um milhão de libaneses.
 
Antes da guerra civil, o Líbano existia no cinema como um cenário para a produção de filmes egípcios e ocidentais. Os poucos cineastas nascidos no país logo o deixavam por falta de recursos locais para a produção cinematográfica. Porém, com o início dos “eventos” – como foram chamados os conflitos da guerra –, também surgiu um impulso artístico da parte dos cineastas libaneses de registrar o momento dramático em que o país vivia. Para eles, além da materialidade do conflito, foi importante expressar a intimidade da experiência de aniquilação de um antigo modo de vida, usando as paisagens urbanas de Beirute (lar de mais da metade da população libanesa) como uma metáfora para um país fraturado, como nos longas de ficção Beirute oh Beirute (Beyrouth ya Beyrouth, 1975), de Maroun Bagdadi, e Beirute, o encontro (Beyroutou el lika, 1981), de Borhane Alaouié, e no documentário de Randal Chahal Sabag Nossas guerras imprudentes (Nos guerres imprudentes, 1995), feito com imagens da época.
 
No início de 1975, Saab estava se preparando para ir ao Vietnã com uma equipe francesa, mas abortou a viagem e seguiu para Beirute para cobrir a guerra. Ela realizou seu primeiro longa-metragem documental, um panorama social do momento chamado Líbano em turbulência (Le Liban dans la tourmente, 1975), codirigido com o jornalista suíço Jörg Stocklin. O filme intercala cenas da população libanesa em combate com entrevistas com os diversos líderes das milícias e do governo. Saab trabalhou com um senso de ironia de quem não se deixa levar por nenhuma tendência ideológica e se deu a liberdade de mostrar abertamente a posição de cada grupo do conflito sem intervenções evidentes. Como ela mesma afirmou: “Eu disse a mim mesma que seria necessário para mim entender o que estava acontecendo em meu país, levando em conta que uma intuição muito vívida me dizia que a guerra não seria curta, e que suas consequências seriam dramáticas.”[4]
 
Antes da guerra, Saab havia escrito resenhas de música pop para o jornal libanês de língua francesa Al Safa. Sua editora no jornal era a escritora Etel Adnan, que logo se tornou uma amiga. Após passar pela experiência de Líbano em turbulência, Saab queria ir além da perspectiva jornalística tradicional e registrar a experiência emocional de vivenciar uma guerra em pleno andamento. Ela pediu para Adnan escrever a narração para um média-metragem observacional de 40 minutos, o que a escritora fez enquanto assistia ao corte bruto do filme. O passeio resultante pela cidade em destroços se chamou Beirute, nunca mais (Beyrouth, jamais plus, 1976), cujo título veio da fala de um soldado criança que já vislumbrava o tamanho da devastação.
 
No ano seguinte, Adnan escreveu o romance impressionista Sitt Marie Rose: amor e sangue no Líbano (Sitt Marie Rose 1977/78), sobre o assassinato de uma professora libanesa cristã que se apaixonou por um médico palestino. Os admiradores do livro incluíram Saab, que havia saído do Líbano para dirigir documentários no Egito e no deserto do Saara em 1977, antes de voltar para fazer a segunda parte do que ela chamou de “A Trilogia de Beirute”. Saab escreveu a narração do média-metragem documental Carta de Beirute (Lettre de Beyrouth, 1978) em parceria com Adnan, novamente numa tentativa de dar sentido à paisagem de destruição em que ela e a população libanesa se encontravam. Porém, dessa vez, incluiu elementos de ficção, ao se colocar como uma personagem diante da câmera. No meio de um dos muitos cessar-fogos a serem quebrados, a figura de Jocelyne dirige entre as metades divididas de Beirute (leste e oeste), e também até o sul do país para testemunhar as movimentações das forças do ONU e da OLP. Ela entrevista pessoas no ônibus e participa em longas conversas com amigos que moram na região da cidade que permanece sendo sua amada “Beirute cosmopolita”.
 
Saab idealizou a terceira parte da trilogia como um filme de ficção, mas mudou de ideia após o cerco de Beirute em 1982, no qual milhares de civis foram mortos e lesionados pelo exército israelense durante um esforço de expulsar a OLP do Líbano. Beirute, minha cidade (Beyrouth, ma ville, 1982) é novamente um passeio pela metrópole que inclui momentos de paz e esperança, mas que também conta com imagens de crianças gravemente feridas, como se a cineasta estivesse declarando que não dava para não mostrar. As cenas perturbadoras são acompanhadas por um texto escrito e narrado em primeira pessoa pelo teatrólogo libanês militante Roger Assaf (também um amigo de Saab e sobrevivente do cerco), com um tom de melancolia e perplexidade ao presenciar o que ocorria com a terra que amava.
 
Beirute, minha cidade começa com Saab diante da câmera, com um microfone na mão, mostrando sua própria casa familiar bombardeada e em ruínas. Quando ela realizou seu primeiro longa de ficção, logo após a conclusão da Trilogia de Beirute, buscou expressar um estado de ser sob uma condição perpétua de violência, através de uma história de amor platônico. A protagonista de Uma vida suspensa (Une vie suspendu, 1985, e também conhecido como L’Adolescente, sucre d’amour) é uma adolescente em Beirute chamada Samar (interpretada por Hala Bassam) que se envolve com um pintor mais velho (Jacques Weber). Os tons e as temporalidades de Uma vida suspensa se misturam livremente conforme os sonhos e as memórias de Samar se misturam com as dificuldades que ela encontra no dia a dia. Para Saab, a longa duração e a brutalidade da guerra civil fizeram com que uma representação direta da violência não tivesse mais eficácia como um gesto artístico, e era então preciso procurar uma outra sensibilidade.
 
Saab nunca se afiliou a nenhum partido político, e inclusive rompeu com membros de sua família por expressar simpatia a todos os envolvidos na guerra. Tampouco se alistou a movimentos ideológicos. Rejeitou, por exemplo, o selo de feminista e insistiu que, para as mulheres, uma integração na sociedade masculina era preferível a um posicionamento separatista. Se viu fortemente como uma libanesa e lamentou pelo país em diversas ocasiões. Em uma entrevista tardia, por exemplo, ela afirmou que testemunhou o antissemitismo pela primeira vez na Europa e o viu no Líbano somente após o cerco de 1982.
 
Heiny Srour cresceu com uma percepção diferente da de Saab, tendo presenciado antissemitismo durante sua infância e crescido em um país confessionalista que não incluía sua fé judaica. Ainda assim, seu maior desafio foi com sua família conservadora, pelo fato de ela ser mulher e querer, desde cedo, seguir uma carreira artística. Srour vislumbrou no cinema uma forma de expressão completa – e a mais política das artes –, porém, sem referências femininas, ela se apoiou na literatura, com a emergência de escritoras árabes, como a jornalista e romancista libanesa Leila Baalbaki, para dar seu primeiro passo para uma vida cinematográfica voltada para a luta pela emancipação feminina. Com muito esforço, Srour convenceu seu pai a autorizar sua saída do Líbano para estudar etnografia com uma bolsa de estudos pela Sorbonne. Em Paris, ela pôde ingressar no Museu do Homem, onde teve aulas semanais com o fundador da instituição, o antropólogo e cineasta francês Jean Rouch, que a estimulou a fazer cinema.
 
A vida na França também encorajou Srour a expressar sua autonomia e independência como mulher, abrindo as portas para que ela realizasse seu filme de estreia, o documentário militante e didático A hora da libertação chegou (Saat el Tahrir Dakkat, 1974). A ideia para o filme surgiu em 1969, quando Srour teve contato com um representante da Frente Popular para a Libertação do Golfo Pérsico Ocupado (PFLOAG), que comentou com ela que a reforma da qual o grupo mais se orgulhava era a libertação feminina. Srour ficou embasbacada e acreditava que estava sofrendo uma alucinação com o calor, mas depois mergulhou em um projeto para documentar o trabalho das mulheres da organização. Ela passou os dois anos seguintes tentando levantar recursos para a realização do filme, que finalmente conseguiu com a ajuda do ministro da Cultura do Iêmen do Sul. Com um operador de câmera e um engenheiro de som franceses, Srour cruzou a fronteira com Omã, em direção à província de Dófar, e passou três meses registrando os membros da guerrilha, em especial mulheres e meninas que tinham naquela luta a única oportunidade para uma mudança de vida.
 
Srour comoveu-se com as soldadas que filmou e ficou desapontada ao refletir sobre a hipocrisia de uma esquerda que não incluiu a libertação feminina em seus sonhos. Em um ensaio de memórias chamado “Mulher, árabe...e cineasta” (“Femme, arabe et... cinéaste”, 1976), ela comentou: “Que prazer que é decidir livremente sobre o tema de um filme – uma revolução feminista – sem que alguém a lembre da ‘principal prioridade’. Que prazer que é decidir, sozinha na mesa de edição, o comprimento da sequência das mulheres sem alguém dizendo: ‘Camarada, esse assunto não está na agenda’.”[5] Srour levou três anos para concluir o filme, com a ajuda de diferentes grupos estudantis e movimentos de esquerda, e, no final, se tornou a primeira mulher árabe a ter um filme selecionado pelo Festival de Cannes e viu sua obra ficar em cartaz em salas parisienses por dois meses. A hora da libertação chegou virou um dos documentos mais importantes da rebelião de Dófar e influenciou profundamente outros movimentos árabes similares. Porém, o filme também foi banido do Líbano e de outros países árabes (com exceção da Argélia) e teve um impacto extremamente negativo em sua família.
 
Srour demorou uma década para concluir seu segundo filme. Durante boa parte do tempo, ela ficou presa em Londres, pois estava na Europa quando os voos internacionais para o Líbano foram cancelados em consequência da erupção da guerra civil. Ela procurou trabalho como professora, tentou fundar ligas para mulheres cineastas e publicou textos críticos, através dos quais demostrou ser uma brilhante polemista sobre questões de autorrepresentação. Além de “Mulher, árabe e... cineasta”, escreveu “A imagem da mulher palestina” (“L’Image de la femme palestinienne”, 1977), no qual analisa uma série de filmes de ficção que tratam da questão palestina para indagar sobre a omissão neles da participação das mulheres na revolução armada ao lado de seus camaradas masculinos. Na conclusão do texto, ela escreveu: “Darmos às costas às urgências históricas não provocará a libertação feminina, mas, sim, assumirmos elas corretamente – ou seja, ao mantermos em mente a necessidade da autonomia da luta feminista, ao mesmo tempo que a conectamos à luta contra a opressão em geral”.[6]
 
O primeiro filme de ficção de Srour abordou esse sentimento, ao traçar o papel da mulher na cultura árabe ao longo do século XX. Leila e os lobos (Leila wa al ziap, 1984) surgiu a partir de uma proposta que o crítico e programador tunisiano de cinema Tahar Cheriaa fez a Srour em 1979 de enviar um roteiro para uma competição para projetos cinematográficos de países francófonos. Srour escreveu o roteiro em três semanas, baseando-se em As mil e uma noites e em diversas histórias da sua infância e episódios da história recente. No filme, Leila (interpretada pela atriz libanesa Nabila Zeitouni) é uma curadora de arte morando em Londres que viaja no tempo, desde a época da ocupação britânica na Palestina de 1920 até as mais recentes batalhas da Guerra Civil Libanesa, numa busca para entender as ligações entre mulheres libanesas e palestinas como participantes na vida política.
 
O filme virou uma coprodução entre Líbano e cinco países europeus, e foi filmado no Líbano, na Inglaterra e na Síria, este último escolhido para representar a Palestina histórica. As filmagens enfrentaram diversos desafios, inclusive ocorrendo no meio de bombardeios, tanto no Líbano quanto na Síria, que também estava passando por conflitos internos. Srour foi orientada por seus colegas sírios de produção, os cineastas Omar Amiralay e Mohammad Malas, a esconder a sua herança judaica e enfrentou resistência da equipe quando foi descoberta. Levou seis anos no total para Srour realizar Leila e os lobos, inclusive ela viabilizou as últimas filmagens com seu próprio dinheiro. Ao longo do processo de realização, ela se viu como Leila, uma mulher libanesa, exilada e marginalizada.
 
Leila e os lobos teve uma boa carreira no circuito alternativo e em festivais (especialmente, segundo Srour, quando houve mulheres nos júris). Porém, Srour não conseguiu gerar fundos para fazer um outro longa-metragem. Sonhava em registrar a vida do Sheikh Imam, um cantor e compositor egípcio cego, renomado por suas músicas folclóricas que transmitiram mensagens políticas de uma forma popular, e sua batalha finalmente resultou no curta-metragem The Singing Sheikh (1991), sob comissão da televisão inglesa. Fez mais alguns trabalhos em vídeo, inclusive um retrato da resistência feminina durante a Guerra do Vietnã, e atualmente se encontra na escrita de um livro sobre a realização de A hora da libertação chegou e na circulação das versões restauradas dos seus dois primeiros filmes.
 
Desde 2021, as restaurações digitais de A hora da libertação e Leila e os lobos (realizadas por instituições na França sob a supervisão da diretora) passaram em festivais e cinematecas ao redor do mundo, frequentemente com a presença da cineasta. Nessas ocasiões, os filmes de Srour são muitas vezes programados com filmes de Saab, com quem ela nunca colaborou, mas respeitou, apesar das suas diferenças, inclusive por dar voz às pessoas que não tinham.
 
Saab morreu de câncer no início de 2019 com sua posição consolidada como uma das cineastas mais importantes do Novo Cinema Libanês (cujas pesquisas, em muitos casos, excluíram Srour, por trabalhar majoritariamente fora do Líbano). Porém, seus filmes circularam pouco no Líbano, algo que mudou com a fundação no mesmo ano da Associação Jocelyne Saab, uma entidade franco-libanesa dedicada a arquivar, preservar e circular a sua obra. Até este momento, a associação coordenou (em colaboração com arquivos europeus e técnicos libaneses) as restaurações digitais de 21 dos mais de 40 filmes de Saab. Os que faltam incluem trabalhos importantes da diretora, como o longa de ficção Era uma vez Beirute (Kanya Ya Ma Kan, Beyrouth, 1994), no qual duas adolescentes libanesas exploram um arquivo de cinema de forma lúdica em busca das imagens cinematográficas de um Líbano anterior à guerra civil.
 
Além de filmes e vídeos, Saab trabalhou nos seus últimos anos em diversos projetos, como a preservação de filmes libaneses em deterioração, a fundação de um festival de cinema no Líbano para passar filmes de países asiáticos e a realização de videoinstalações. Sua última obra concluída foi um livro de fotos chamado Zonas de guerra (Zones de guerre, 2018), editado pela professora e curadora francesa de cinema Nicole Brenez, no qual apresentou cenas dos seus filmes ao lado de imagens inéditas. Destacam-se no livro os registros de um curta-metragem documental que Saab realizou no mesmo ano em que começou A Trilogia de Beirute, chamado As crianças da guerra (Les Enfants de la guerre, 1976). O filme discute o impacto psicológico da recém-nascida guerra civil sobre crianças que sobreviveram a um massacre e cujas brincadeiras lidam exclusivamente com o tema do conflito armado. E questiona a possibilidade dessas e outras crianças libanesas de viverem em um país sem guerra.
 

A Sessão Mutual Films de outubro de 2025 é dedicada às memórias da curadora de arte Koyo Kouoh (1967-2025), do cineasta e diretor de fotografia Mike de Leon (1947-2025), do ator, crítico e professor de cinema Jean-Claude Bernardet (1936-2025), do documentarista Vladimir Carvalho (1935-2024) e dos jornalistas Ahmed Abu Aziz, Hussam al-Masri, Mariam Abu Daqqa, Mohammad Salama e Moaz Abu Taha.
 

[1] Uma tradução do texto para o inglês pode ser lida no site da revista Sabzian, dentro de um dossiê sobre a obra da diretora Heiny Srour. O texto também está disponível em português no site da Mutual Films.
 
[2] A entrevista que Srour realizou em 2020 com o curador e crítico francês Olivier Hadouchi pode ser encontrada em inglês através do link “My loyalty is always with the oppressed. Whether in Africa, the Middle East or Vietnam”
 
[3] A fala de Saab se encontra em inglês na antologia crítica ReFocus: The Films of Jocelyne Saab (2021), editada por Mathilde Rouxel e Stefanie Van de Peer.
 
[4] A entrevista que Saab cedeu em 2014 para Olivier Hadouchi pode ser encontrada em inglês através do dossiê de Sabzian sobre a cineasta. E, em português, no catálogo (pdf) da edição de 2021 da Mostra de Cinema Árabe Feminino.
 
[5] O texto pode ser lido na íntegra no site www.sabzian.be. Ele também foi publicado como um breve livro trilíngue (árabe/francês/inglês) em abril de 2025.
 
[6] Uma tradução para o inglês do texto de Srour pode ser lida através do link The Image of the Palestinian Woman.
 

 

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