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“Notas sobre a produção de Farol do caos
 
A entrevista a seguir com o crítico e cineasta Manfred Blank, co-diretor com Wolf-Eckart Bühler de Farol do caos, foi conduzida por e-mail em inglês entre dezembro de 2024 e janeiro de 2025. A tradução para português foi postada com a permissão de Blank. Mais informações sobre o trabalho do cineasta podem ser encontradas em alemão e em inglês através do site blankfilm-berlin. Embora a publicação Filmkritik tenha sido uma das maiores revistas de cinema de língua alemã, a maioria de seus textos (inclusive os de Blank e Bühler) não foram traduzidos para outras línguas. Uma seleção de textos da crítica Frieda Grafe que foram escritos para a publicação pode ser encontrada em inglês no site Sabzian.
 
Mutual Films: Sabemos que você trabalhou como documentarista e assistente em filmes de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, assim como crítico para a revista Filmkritik. Quais eram seus interesses como crítico? Você escreveu muito sobre o cinema americano e/ou artistas norte-americanos da Esquerda?
 
Manfred Blank: Como crítico de cinema, eu tenho me concentrado em filmes franceses, especialmente nas obras dos cineastas da chamada Nouvelle Vague. Então acabei me tornando um tipo de especialista nesse assunto. Vocês talvez já saibam que, no final dos anos de 1980, junto com Harun Farocki [que escreveu para a Filmkritik ao lado de outros cineastas-autores, como Hartmut Bitomsky e Helmut Färber], fiz um filme chamado Kinostadt Paris (1988) sobre como Paris é um paraíso do cinema ( blankfilm Berlin ). Mas não é possível estudar a politique des auteurs na crítica francesa ["política dos autores", na qual o diretor é visto como o autor principal de um filme] sem um profundo entusiasmo e conhecimento do cinema clássico norte-americano. Todos nós, críticos, que trabalhamos para a Filmkritik nas décadas de 1970 e 1980, éramos amantes de filmes policiais americanos, filmes de gângster e faroestes.
 
Bühler e eu estudamos juntos em Munique e, como um graduado em cinema, eu o ajudei com as filmagens e o trabalho de pós-produção em seus filmes sobre Leo Hurwitz e Abraham Polonsky, assim como seu ensaio e curta-metragem documental sobre Irving Lerner. Mas a produção cinematográfica de esquerda dos EUA não era meu interesse principal.
 
MF: O que te atraiu na figura de Sterling Hayden?
 
MB: Eu sempre compartilhei a admiração por Johnny Guitar que François Truffaut expressou em sua crítica do filme de Nicholas Ray para Cahiers du cinéma ( letterboxd.com ) e também admirava a atuação de Hayden no filme. Então, Hayden se tornou um dos meus atores favoritos, eu procurei assistir ao máximo possível dos filmes dele. Quando eu participei de um grupo de teatro estudantil em Munique, aprendi sobre Joseph McCarthy e o Comitê de Atividades Antiamericanas. Não era um assunto estranho para mim quando Bühler me pediu para trabalhar com ele no roteiro de um longa-metragem baseado no livro de Hayden, Wanderer. Bühler me pediu com a esperança de que eu pudesse trazer ao trabalho um tipo de toque de Brecht e Straub, e nós dois concordamos que eu deveria dirigir o filme posteriormente. Em seu primeiro livro como autor, Hayden tenta entender por ele mesmo como se tornou uma testemunha amigável (um informante, de acordo com sua própria opinião) e lidar com a vergonha de ter exercido esse papel. Quando tivemos a oportunidade de conhecer Hayden pessoalmente - o que resultou nas filmagens de Farol do caos - meu principal interesse era conhecer mais sobre o marinheiro-ator-escritor como o único homem a expressar abertamente seu ódio contra sua própria aparência amigável diante do comitê.
 
MF: E como surgiram as filmagens de Farol do caos?
 
MB: Bühler e eu estávamos prestes a terminar o roteiro baseado em Wanderer, que alguns anos depois foi transformado no filme dele Der Havarist. Era o verão de 1981 quando Bühler recebeu a informação de que Hayden poderia ser encontrado em sua barcaça não muito longe de Besançon, França. Decidimos vê-lo imediatamente, e levei uma câmera Super-8 comigo. Passamos três dias na região sob a cidadela de Besançon com Hayden conversando conosco dia e noite, junto com o filho dele, Dana, e Felix Hoffmann, que era um colega nosso da Filmkritik e amigo de Bühler de muitos anos. Que pena que com nossa pequena câmera semiprofissional não conseguimos gravar nenhum som, todos nós concordamos. Então, tomamos a decisão conjunta de voltar alguns dias depois.
 
Procurei um operador de câmera e equipamento profissional de 16 mm e entrei em contato com meu amigo Werner Dütsch, que na época trabalhava no departamento de cinema da estação de TV WDR, sediada em Colônia. Dütsch me deu sua palavra de que a estação compraria os direitos televisivos para as futuras filmagens de Hayden como base para um programa de TV a ser escrito e codirigido por mim e Bühler, que então encomendou o estoque de película necessário. Trabalhei com um gravador Nagra como um experiente técnico de som e, ao mesmo tempo, dirigi nosso operador de câmera (Bernd Fiedler) e conversei com Bühler e Hoffmann sobre como entrevistar Hayden. As filmagens na barcaça Farol da Islândia, que Hayden apelidou de "Farol do caos", duraram sete dias e sete noites. Durante esse período, Hayden nos deu um rolo 16 mm de filmagens coloridas e P&B, que acabou sendo um filme caseiro mudo chamado Windjammer, que mostrava cenas de cruzeiros que ele havia feito em sua própria escuna.
 
Depois que voltamos para Munique e tivemos a película revelada em nossas mãos, comecei a preparar o corte bruto para o filme de TV de 45 minutos, que eventualmente se tornou Vor Anker, Land unter - Ein Film mit Sterling Hayden. Logo descobrimos que ele não poderia conter todos os momentos emocionantes e comoventes das nossas filmagens. Como resultado, decidimos realizar uma segunda versão do material na forma de um documentário de longa-metragem para ser exibido nos cinemas. Preparei um projeto para enviar para um edital e também editei as cenas da nossa primeira viagem a Besançon como uma espécie de teaser. O apoio foi concedido, mas o teaser se perdeu nas profundezas da instituição patrocinadora. Quando finalmente sentimos a necessidade de que algumas dessas filmagens aparecessem no prólogo de Farol do caos, tivemos de pegar o que sobrou delas.
 
Era preciso concluir a versão para TV primeiro, de acordo com nossas negociações com Werner Dütsch e WDR. E, como esta versão veio primeiro, ela não é de forma alguma uma versão reduzida do filme de duas horas de duração. Também seria errado pensar que qualquer pressão tenha sido colocada sobre nós, seja por Werner ou por seus superiores, para moldar nosso material de alguma maneira específica. Naquela época, o departamento de cinema da WDR tinha documentações de 45 minutos para acompanhar a programação de filmes da estação, e as documentações eram sempre focadas em assuntos relacionados ao cinema. Então, decidimos começar o filme com uma sequência de Johnny Guitar e uma conversa com Hayden sobre este filme, embora soubéssemos que ele não gostava da maioria de suas atuações para o cinema [Johnny Guitar incluído].
 
Mais de quarenta anos depois, tenho que admitir que Farol do caos [que não contém a sequência com Johnny Guitar] é um filme muito melhor do que Vor Anker, Land unter. Isso se deve em grande parte ao fato de que, na época em que estávamos fazendo a versão para TV, ainda não conhecíamos nossas filmagens de cor. Então, decidimos recomeçar assim que a edição desta versão estivesse concluída. Levou cerca de seis meses para dar forma a Farol do caos, começando no inverno de 1982. De certa forma, voltamos no tempo com o desejo de contar a história de como conhecemos Sterling Hayden e passamos uma semana a bordo daquela barcaça ancorada em uma bacia diretamente abaixo da cidadela de Besançon, uma semana durante a qual ele estava simultaneamente bebendo muito e nos contando ansiosamente sobre sua vida e como se sentia.
 
A estrutura que desenvolvemos para Farol do caos surgiu como uma espécie de diário. Cada um dos dias que passamos com Hayden foi dedicado no filme a um assunto específico: a barcaça, o mar, o álcool, o rio e a cidade, o Comitê e Hollywood. O diário continha um intermezzo que explicava o significado do termo "Farol do caos", que não era apenas o apelido que Hayden deu à sua barcaça, mas também o título provisório de um livro que ele planejava escrever e uma metáfora para seu estado de espírito. A sequência inicial do filme, com a exposição sobre o lugar e o personagem, e o epílogo com nosso adeus a Hayden e vice-versa formaram uma moldura em torno da pintura cinematográfica. Tentamos ser fiéis à maneira como havíamos filmado, que era com o que o ex-diretor da Cinemateca Francesa, Dominique Païni, certa vez caracterizou (em referência a Straub-Huillet em um curta-metragem que fiz sobre eles para a ARTE TV) como "L'insistance du regard" [a insistência do olhar].
 
No meio do verão, levamos nosso negativo para o laboratório do Cinecittà, em Roma, para fazer a cópia de referência de Farol do caos, mais três cópias de exibição (uma da versão em inglês e duas da versão em alemão). Precisávamos ser econômicos. Nossa produção era de baixo orçamento em termos alemães e sem qualquer orçamento em relação aos filmes feitos na época na Suíça, França, Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos. Na Itália, finalmente pudemos falar sobre os próximos passos enquanto esperávamos as cópias, e procurávamos locações na Sardenha para as sequências de navegação em Der Havarist. Como resultado, quebramos. Bühler insistiu que todos os direitos comerciais de Farol do caos pertenciam a ele, e, como sempre pensei que éramos amigos, não fiz questão de falar previamente sobre contratos (escritos ou orais). Conversei com alguns advogados que me deram muito pouca esperança de que eu receberia minha metade dos direitos comerciais e então tive que romper a amizade com Bühler e renunciar à direção de Der Havarist (que seria meu primeiro longa de ficção depois dos longas que fiz na escola de cinema). Ele então teve que me pagar por todos os meus trabalhos em Farol do caos: codiretor, coescritor, engenheiro de som, montador e produtor executivo.
 
Eu sempre fui dependente em cooperação - desde meus dias no teatro estudantil e nos filmes na escola de cinema, até os filmes com Bühler, três filmes com Harun Farocki e 40 anos de trabalho com minha esposa Merlyn Solakhan. Eu não fiquei contente que essa situação tenha terminado em tal desastre. Um dia, de volta a Munique, no final do verão, no meio de nossas negociações feitas por cartas e telefonemas, Bühler me ligou e me pediu para ir imediatamente ao porto na cidade holandesa de Dordrecht. Hayden estava na Europa novamente, com sua barcaça ancorada em um cais não muito longe do estuário do Rio Reno. Bühler queria mostrar o filme a ele, e eu aceitei ir também, porque para mim isso era óbvio.
 
A situação era bem diferente de como foi caracterizada mais tarde em entrevistas e textos. Hayden estava em boas condições, sóbrio, e tinha passado várias semanas em um hospital para superar seu alcoolismo (o que era algo que já sabíamos antes de vê-lo). Ele foi muito educado e um excelente anfitrião. Mas as relações permaneceram frias. Assistimos ao filme em um cinema em Dordrecht que ele havia alugado para uma exibição à tarde, junto com nossas companheiras e dois jovens amigos de Hayden da Holanda. Ele então nos convidou para ir a um restaurante. De volta à barcaça, em um fim de tarde ensolarado, ele declarou que o personagem que havíamos mostrado no filme era um clochard de luxe ["vagabundo de luxo"]. Não era ele, não o Sterling Hayden como poderíamos filmar naquele momento. Ele tentou nos convencer a gravar mais uma vez em Sausalito, Nova York, Beverly Hills, que eram propostas que ele já havia feito a Bühler em telegramas enviados durante nosso processo de pós-produção.
 
Já tínhamos respondido a ele no epílogo de Farol do caos: "Isso seria outro filme", diz a narração em off. Passamos horas conversando com ele, mas não houve consentimento, e o adeus dessa vez foi amargo. Nós estávamos certos, mas eu me senti um filho da puta. Hayden também estava certo, mas o que ele propôs era uma ilusão. Um pouco como o caminho de volta para casa de Dix Handley no filme O segredo das joias.
 
MF: Você menciona a narração em Farol do caos. Como você e Bühler imaginaram a narração no filme?
 
MB: Em geral, não gosto de usar narração. Tínhamos isso no filme para televisão sobre Hayden e eu não estava contente, embora a narração funcione na TV, que é uma filha ilegítima do cinema e do rádio, com mais semelhança familiar com o rádio. Minha primeira intenção foi evitar usar narração na versão para o cinema. No entanto, percebemos que, sem narração, Farol do caos seria uma obra muito mais difícil em termos de acessibilidade ao público, e haveria um grande risco de frustrar nossa audiência.
 

Eu me esforcei com o trabalho de cortar tons de adulação na direção de Hayden, assim como a tendência que os textos críticos de Bühler têm, de vez em quando, de serem encharcados de testosterona. Por semanas, procurei uma modulação aceitável no texto, e estou convencido de que finalmente a encontramos. A narração do filme reflete as esperanças e sentimentos que tivemos durante aquela semana que passamos como convidados de Hayden. Interferimos muito pouco em nosso protagonista durante as filmagens. (Muitas vezes, quando você vê alguém fazendo isso em um filme, o resultado é vergonhoso.) Então a única coisa que poderíamos acrescentar era nossos próprios sentimentos, com a esperança de que, dessa forma, algum diálogo resultasse.
 

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