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Os vampiros de Luis Ospina e Pere Portabella
Conhecido por lendas em países tão diversos como Grécia, Roma, França, Índia e até mesmo China, ele engorda com o sangue dos vivos. Ele pode, por tal nutrição, até mesmo ficar mais jovem. Ele projeta sombras estranhas quando anda sobre a Terra. Ele pode se transformar em cachorro, morcego, em outros tipos de animais. Ele vive à noite, pois, durante o dia, deve se esconder dentro de seu túmulo. Aqueles de quem se alimenta adoecem e morrem, e então se tornam como ele - eles próprios vampiros. Professor Van Helsing, interpretado por Herbert Lom no filme de Jesús Franco Conde Drácula (Count Dracula, 1970) Nós mesmos éramos como vampiros, sugando a criatividade e a inspiração uns dos outros. Karen Lamassonne, artista visual estadunidense-colombiana, em 2024, sobre os artistas que integraram o Grupo de Cali nas décadas de 1970 e 1980 O vampirismo é uma força ao mesmo tempo destrutiva e criativa. Ao se alimentar da vida dos outros, o vampiro não apenas se sustenta, mas se enriquece. Isso fica evidente no caso do livro mais celebrado do autor irlandês Bram Stoker, que foi originalmente publicado em Londres em 1897. A mudança do Conde Drácula da Transilvânia para a Inglaterra é facilitada por um mercado imobiliário predatório, cujos controladores vendem um terreno a um elegante assassino morto-vivo. A estrutura não linear do romance apresenta o conde através dos olhos e ouvidos de diversos narradores, numa coletânea de capítulos que são transmitidos como entradas de diários, cartas, clippings de jornal e transcrições de registros fonográficos. A ficção vampiriza o retrato da realidade. A narrativa de Drácula (Dracula) tem sido invocada por diversos artistas desde a publicação do livro. O cineasta colombiano Luis Ospina e o espanhol Pere Portabella reconheceram na figura do vampiro a possibilidade de elaborar metáforas sobre seus momentos políticos e o lugar do seu trabalho artístico em relação a eles. O vampiro, nos dois casos, virou um ponto de partida. Ospina e Portabella cresceram em períodos de guerras civis e ditaduras. Quando Luis Alfonso Ospina Garcés nasceu, em 1949, em Cali, a Colômbia havia acabado de entrar na chamada La Violencia, uma guerra civil entre apoiadores dos partidos Liberal e Conservador que foi provocada pelo assassinato do líder liberal Jorge Eliécer Gaitán em 1948. La Violencia tomou a vida de 180 mil colombianos, contou com quatro anos de ditadura militar e terminou em 1958, com um acordo entre os dois lados para uma alternação de poder ao longo das duas décadas seguintes, sem que conseguissem eliminar os problemas nacionais de ampla pobreza e desigualdade social. A Espanha não desfrutou de um destino mais pacífico. As transformações sociais e tecnológicas da virada do século 20 na Europa, que levaram à criação de organizações sindicalistas, socialistas e nacionalistas, também resultaram em uma instabilidade social que culminou com uma ditadura apoiada pela monarquia, entre 1923 e 1931. A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) eclodiu cinco anos depois e tomou a vida de meio milhão de pessoas. Essa guerra se desenvolveu como um conflito entre forças comunistas e fascistas na Espanha, e levou à instauração de uma sanguinária ditadura liderada pelo general Francisco Franco até sua morte, em 1975. Uma das iniciativas de Franco foi a proibição do uso público de línguas não castelhanas. Isso teve impacto sobre a vida de Pere Portabella i Ràfols, que nasceu em 1927 em uma rica família de industrialistas na região da Catalunha, cuja língua nativa catalã foi uma das banidas. Pere cresceu nas cidades catalãs de Figueres e Barcelona, e seu pai conservador trabalhou para o governo de Franco durante sua juventude. O filho, desde cedo, tinha uma posição política de esquerda, que desenvolveu após se mudar para Madri para estudar química. Pere se integrou socialmente a um grupo de artistas cujo trabalho admirava, apesar de sentir que ele mesmo não tinha talento artístico. Eles se reuniam na casa do pintor catalão Antoni Tàpies para assistir a filmes projetados em super-8 e 16 mm, em sessões que eram, muitas vezes, comentadas pelo poeta catalão Joan Brossa. Portabella respeitava o cinema narrativo, porém tinha uma afinidade com filmes de vanguarda que desafiavam as normas de linguagem e comportamento convencionais - entre eles, a obra de Luis Buñuel, que deixou a Espanha durante a guerra civil e, naquele momento, morava no México. Quando Portabella decidiu entrar nas artes, foi como produtor de cinema. Através de sua produtora Films 59, "Pedro Portabella" produziu o longa de estreia do espanhol Carlos Saura, Los golfos (1960), e um dos primeiros longas do italiano Marco Ferreri (que na época trabalhava na Espanha), El cochecito (1960). Esbarrou com Buñuel no elevador do hotel em Cannes e insistiu que o mestre deveria voltar para a Espanha e fazer um filme em resistência à ditadura. Em consequência, participou da coprodução espanhola-mexicana Viridiana (1961), uma história original e satírica de Buñuel sobre a jovem noviça do título (interpretada pela atriz mexicana Silvia Pinal), que enfrenta as brutais realidades do mundo ao tentar estabelecer um abrigo para pessoas econômica e fisicamente desfavorecidas. Viridiana ganhou a Palma de Ouro em Cannes no ano seguinte, mas foi tido como uma blasfêmia e banido da Espanha, cujo governo contava com forte apoio da Igreja Católica. Buñuel, mais uma vez, teve que deixar o país, enquanto Portabella teve seu passaporte confiscado e se tornou um exilado em sua terra natal. Ele então partiu para a direção de cinema. Apesar de suas experiências com a produção de longas de ficção, se considerava um cineasta de vanguarda e entendia sua arte como multidisciplinar. Seu primeiro filme, Não conte em seus dedos (No compteu amb els dits, 1967), um curta-metragem de cores vibrantes, foi escrito em parceria com Joan Brossa como uma série de esquetes satíricas de situações cotidianas e que remetem a anúncios comerciais voltados para a alta sociedade. Elementos dissonantes dão à obra um tom surrealista que aponta para a hipocrisia de uma classe social alienada e sexualmente reprimida. Em um anúncio de bebida alcóolica, vemos escrito na tela, em letras garrafais: "É o melhor. A ciência disse isso... E eu não minto." Enquanto isso, uma voz de mulher declara: "Nos obedeça em tudo e, assim, não será responsável por nada". Portabella seguiu a parceria com Brossa nos seus primeiros três longas, sempre trabalhando de uma maneira associativa, na qual tentava transformar em imagens as ideias sugeridas pelo poeta. O enigmático Nocturno 29 (1968) foi estrelado pela atriz italiana Lucia Bosè, no papel de uma aristocrata bela e retraída que vive um suposto triângulo amoroso. A personagem perambula por sua casa, pelo jardim, por uma fábrica de tecidos, revelando lugares privados de extremo luxo e coletivos de trabalho - a fonte de toda a riqueza. O alto contraste da película em preto e branco cria, por vezes, uma imagem quase abstrata, que é acompanhada por longos silêncios ou por sutis sons diegéticos, interrompidos por violentas cenas de ruptura formal. A inusitada estética visual e sonora de Nocturno 29 foi aprofundada no longa subsequente de Portabella, Vampir-Cuadecuc (1970), que ele financiou com os lucros de uma série de curtas-metragens de sua autoria sobre o pintor Joan Miró. O filme vampiriza o set de filmagem de uma adaptação cinematográfica inglesa de Drácula, dirigida pelo prolífico diretor espanhol de filmes de gênero de baixo orçamento Jesús Franco, que estava sendo rodada na região da Catalunha. Após ter o aval da equipe de Franco, Portabella rodou seu filme em paralelo. Estrelado pelo vampiro imortal Cristopher Lee e pela musa espanhola Soledad Miranda - que faleceria logo após as filmagens em um acidente de carro - , a produção de Portabella, diferentemente da de Franco, cria um ambiente sibilino e sombrio, sem perder o caráter irônico, em uma alegoria sobre a criação artística perante condições clandestinas. O diretor utilizou estoques vencidos de películas em preto e branco, que provocaram uma instabilidade na imagem, resultando em texturas imprevisíveis, que foram acentuadas pelo alto contraste. A sonoplastia construída pelo compositor Carles Santos (que se tornou o mais longevo parceiro criativo de Portabella) ressalta a estranheza da imagem a partir de sons desconexos e dissonantes tirados de arquivos de sonoplastia, da rua e de composições musicais. O efeito granulado e difuso da imagem e o som dissonante retratam a então realidade violenta e obscura da Espanha e se opõem à visão do franquismo, que, pelo controle da mídia e das artes, vinculava uma imagem inverídica, triunfante e religiosa do país. Em uma carta de apresentação do seu filme no MoMA, em Nova York, evento em que não pôde comparecer, Portabella explicou: "A repressão da mídia de massa faz com que Vampir, o filme que vocês assistirão a seguir, não tenha existência legal no meu país. E essa estranha situação não deve ser entendida como um fato isolado, mas como algo que reflete melhor a realidade da Espanha hoje, mais do que qualquer filme representando oficialmente a Espanha em um festival internacional." [1] Enquanto em Vampir-Cuadecuc o clima umbroso local foi projetado na história do conde Drácula, o longa-metragem subsequente de Portabella, Umbracle (1972), serve como uma libertação formal e uma denúncia direta à censura das artes. A obra semidocumental e poética mais uma vez contou com as colaborações de Carles Santos, Joan Brossa e Christopher Lee, que concordou em ser filmado fora do set de Jesús Franco. O filme inicia com um fantasmagórico canto, que embala a perambulação do ator-vampiro por entre as vitrines de bichos empalhados do Museu de Zoologia de Barcelona. Ele, então, caminha pela cidade, compra um charuto cubano e presencia uma cena de violência, na qual um passante é surpreendido por dois homens que o espancam e o jogam para dentro de um carro. Segue-se uma série de declarações de críticos sobre a censura ao cinema durante o regime franquista. Um deles lê alguns dos códigos da lei espanhola criados para o cinema, como o que declara que, "mesmo que individualmente as cenas não apresentem qualquer gravidade, mas que coletivamente contenham um clima erótico, violento, grosseiro ou mórbido, o filme será proibido." "Uma hipocrisia", diz o comentarista, "considerando que a polícia deste país utiliza métodos terroristas nas ruas, violência contra civis, trabalhadores, estudantes." Portabella continua comentando o clima da época, com trechos de um filme oficial no qual um padre soldado reza a missa no meio de um bombardeio, com a performance de palhaços sendo palhaços, com galinhas sendo depenadas em uma fábrica, e com Christopher Lee recitando o poema "O corvo" ("The Raven", 1845), de Edgar Allan Poe. O cineasta intensificou suas críticas ao regime por meio de filmes didático-políticos. Poetas catalães (Poetes Catalans, 1970) é um curto e potente registro de um festival de poesia escrita e falada em catalão, onde os poetas-ativistas, ao lerem seus versos de protesto, são ovacionados por uma plateia febril. O jantar (El sopar, 1974/2018) reúne em uma casa de campo cinco ex-prisioneiros políticos para discorrer de forma racional e ao mesmo tempo emocional sobre a experiência de passar anos na cadeia e sobre como sair dela sem perder o espírito da militância. Logo após a morte de Francisco Franco, Portabella realizou o catártico Informe geral (Informe general sobre algunas cuestiones de interés para una proyección pública, 1976), reunindo entrevistas sobre o futuro da Espanha com membros de partidos políticos de esquerda, entremeadas por cenas de manifestações de rua, um passeio pelo palácio real de El Pardo, onde viveu o Generalíssimo, e reencenações de atos violentos da polícia franquista contra ativistas. O filme também apresenta o relato dos advogados de um prisioneiro político condenado à morte, reconstituindo a cena da execução in loco. Em 1977, Portabella foi eleito para servir no Senado espanhol, nas primeiras eleições democráticas do país pós-Franco. Ele trabalhou em diversas iniciativas políticas, entre elas a formação da nova Constituição espanhola de 1978 e o fim da pena de morte (extinta parcialmente em 1978 e amplamente em 1994), e posteriormente também ocupou um cargo no Parlamento da Catalunha. No ano em que Portabella entrou na política, Ospina codirigiu com Carlos Mayolo seu filme mais celebrado, o falso documentário Agarrando pueblo (Os vampiros da miséria) (Agarrando pueblo, 1978). Ospina cresceu em um ambiente familiar confortável, filho de um comerciante de produtos de limpeza de piscinas, na terceira maior cidade da Colômbia e fora das áreas rurais que serviram como os principais campos de batalha de La Violencia. Quando ele tinha sete anos, uma explosão de pólvora no centro de Cali levou sua família a se mudar para a casa de sua avó. Frequentava sessões de faroestes e comédias hollywoodianas ao lado de seu irmão mais velho, Sebastián (um eventual ator no cinema colombiano), e seu amigo Mayolo (nascido em 1945), que morava no outro lado da rua. Quando adolescente, Ospina foi expulso do colégio jesuíta pelo crime de "sustentar más conversas". Ele, então, fez algo comum para jovens colombianos de classe média-alta, ao sair de seu país para estudar nos Estados Unidos. Se graduou na escola secundária em Boston, em 1968, e começou a faculdade na UCLA (Universidade de Califórnia em Los Angeles), onde se formou antes de voltar para Cali em 1972. Sua intenção inicial era de estudar arquitetura, mas logo mudou seu foco para o cinema. Descobriu um fascínio especial pela montagem e pela obra de cineastas do found footage, como Bruce Conner. Ospina casou os mundos do documentário e da ficção em seu primeiro filme feito na faculdade, Ato de fé (Acto de fé, 1970/2017), uma adaptação de um conto de Jean-Paul Sartre, transplantada para as ruas movimentadas de Los Angeles, sobre um jovem assassino niilista. Voltou para Cali de férias e viu um contraste entre a realidade e a ilusão dos Jogos Pan-Americanos de 1971, que ofereceu para o mundo uma impressão de riqueza em meio à pobreza latente da cidade. Se juntou a Mayolo, que trabalhava com publicidade e tinha acesso a equipamentos de filmagem, para fazer um curto documentário. A primeira parte de Ouça veja (Oiga vea, 1972) foca nas imagens de celebração associadas aos Jogos, enquanto a segunda enquadra a vida fora dos estádios e as pessoas que não têm como entrar neles. A crítica mais compreensiva de Ouça veja foi publicada na revista especializada Ojo al Cine por um dos seus fundadores, o escritor Andrés Caicedo, também nativo de Cali. Ele e os dois cineastas moravam em um edifício chamado Ciudad Solar, que acolhia o Grupo de Cali, uma comunidade de artistas cujas atividades incluíram um cineclube, com longas discussões após as projeções. Junto a clássicos, os organizadores do Cineclube de Cali (que incluíram Caicedo e Ospina) fizeram questão de passar filmes B e de terror como obras de valor artístico com críticas sociais. Ospina se considerava um anarquista, com pouca utilidade para a política. Enquanto isso, Mayolo era um ativista, inicialmente ligado ao Partido Comunista Colombiano, cujos primeiros filmes como diretor retrataram de forma sincera a luta diária de seu povo. A conjunção dos talentos e sensibilidades dos dois resultaram na codireção de uma série de curtas com um olhar de confronto. Após Ouça veja, eles fizeram o documentário Cali: de película (1973), que nasceu de uma comissão para a anual Feira de Cali, mas que logo se transformou em um filme de rua, musical e colorido, que buscou apresentar a cidade, suas loucuras e contradições. A primeira experiência da dupla com a ficção foi Asunción (1975), um retrato de uma trabalhadora doméstica (interpretada por Marina Restrepo) que destrói a casa de sua patroa (na vida real, a casa dos pais de Mayolo) quando a família viaja de férias. Agarrando pueblo (Os vampiros da miséria) surgiu como uma sátira do gênero colombiano de "filmes de orçamento", curtas-metragens realizados com poucos recursos para passar antes de longas, que muitas vezes tratavam do sofrimento dos mais pobres. Ospina e Mayolo perceberam a natureza exploratória desses filmes e criaram uma equipe de filmagem fictícia que persegue pessoas nas ruas de Cali para representar a miséria para uma televisão alemã. Quando eles armam uma cena com uma falsa família de indigentes em um casebre aparentemente abandonado, surge o morador do local chamando-os de "vampiros", tomando o rolo de película e afugentando os invasores. O morador, Luis Alfonso Londoño, era conhecido de Ospina e Mayolo desde sua aparição em Ouça veja. Agarrando pueblo termina com os três homens comentando os resultados do novo trabalho. Ospina montou Agarrando pueblo nos estúdios de Chris Marker, em Paris, onde o filme estreou antes de ganhar prêmios em festivais em Lille, Bilbao e Oberhausen. Na ocasião do lançamento, Ospina e Mayolo distribuíram um breve documento chamado "Manifesto da pornomiséria", que serviu como uma declaração contra as tendências do cinema colombiano daquele momento. "Se a miséria havia servido ao cinema independente como elemento de denúncia e análise, o afã mercantilista a converteu em válvula de escape do mesmo sistema que a gerou", declararam os autores, que consideraram seu filme "uma espécie de antídoto [...] para abrir os olhos das pessoas para a exploração que existe por trás do cinema miserabilista".[2] O nome do produtor listado na claquete da produção miserabilista em Agarrando pueblo é Roberto Hurtado, uma brincadeira com as palavras espanholas para "roubo" e "furto". Este nome também é dado ao velho e enfermo magnata no longa-metragem de estreia de Ospina, Puro sangue (Pura sangre, 1982), que o cineasta realizou graças a uma breve onda de financiamento para longas colombianos no início da década de 1980. O personagem (interpretado por Gilberto "Fly" Forero, um não ator que Ospina descobriu devido a seu trabalho como técnico no Teatro Municipal de Cali) sofre de uma doença rara, que precisa ser tratada com transmissões regulares de sangue - obtido de jovens homens sequestrados por seus funcionários (um deles interpretados por Mayolo). O personagem decrépito encontra ressonâncias em diversas figuras icônicas, entre elas o Nosferatu de Murnau, o bilionário recluso norte-americano Howard Hughes, o protagonista wellesiano Charles Foster Kane e o magnata alemão-colombiano de cerveja Leo Kopp, cujo túmulo em Bogotá é famoso por receber visitas de fiéis que esperam ter seus desejos realizados. Ospina e seu corroteirista Alberto Quiroga se inspiraram para a narrativa de Puro sangue no caso não resolvido do "Monstro dos terrenos baldios", um assassino de meninos em Cali que assombrou a Colômbia nas décadas de 1960 e 1970. A essa história, o cineasta acrescentou elementos para, mais uma vez, criticar o vampirismo de uma sociedade classista e racista. Hurtado e seu filho controlam uma fazenda de cana-de-açúcar, onde a maioria dos trabalhadores são negros, no Valle del Cauca, um dos maiores receptores do tráfico de africanos escravizados na Colômbia durante o período do Comércio Triangular do Atlântico. Enquanto isso, a enfermeira, o ajudante e o motorista de Hurtado (este último um ex-militar da época de La Violencia) procuram vítimas socialmente marginalizadas nas ruas da cidade, para que a lei não dê tanta importância aos desaparecimentos. Quando finalmente alguém é preso pelos crimes, é um morador de rua negro (interpretado por Álvaro Gutiérrez, que trabalhava ao lado de Forero no Teatro Municipal) que, com o olhar vidrado de um homem fora de si, faz uma confissão para os noticiários que é tida como autêntica. Mais uma vez, a televisão transmite uma informação falsa, enquanto os verdadeiros vampiros se divertem tranquilamente em um piquenique. Puro sangue é dedicado à memória de Andrés Caicedo, falecido precocemente em 1977. O filme foi lançado em salas colombianas um ano após sua finalização e teve pouco retorno de bilheteria. Mayolo entrou na direção de filmes de ficção para cinema e televisão, muitas vezes seguindo a linha do "gótico tropical" com filmes de terror. Ospina (que montou diversos desses trabalhos) mudou seu foco para realizar documentários em vídeo que tratavam do que ele chamou de suas principais obsessões - "a cidade, a memória e a morte" [3], - a começar com o filme-retrato Andrés Caicedo: uns poucos bons amigos (Andrés Caicedo: unos pocos buenos amigos, 1986). O diretor realizou biografias de artistas colombianos, incluindo o pintor Lorenzo Jaramillo, o compositor Antonio María Valencia e o faquir de rua Dudman Adolfo Murillo (dez anos após a aparição de Murillo em Agarrando pueblo). Também contou a história recente da cena artística colombiana, a partir da biografia de um artista plástico imaginário e imaginado por outros em Um tigre de papel (Un tigre de papel, 2007). O próprio Ospina se tornou protagonista de sua obra quando enfrentou um tratamento médico e relembrou os integrantes do Grupo de Cali (entre eles, Mayolo, que faleceu em 2007), no documentário Tudo começou pelo fim (Todo comenzó por el fin, 2015). Ele morreu de câncer em 2019 e, em seus últimos anos, fundou e dirigiu o Festival Internacional de Cine de Cali (FICCALI) e supervisionou a preservação e restauração de seus trabalhos cinematográficos e os de outros cineastas. Portabella, ainda ativo, depositou os negativos de seus filmes na Cinemateca da Catalunha (que foi fundada em 1981), e os materiais eventualmente serviram como base para boas digitalizações. Ele fez apenas um filme entre os anos 1980 e 1990, o longa de ficção Ponte de Varsóvia (Pont de Varsòvia, 1989), antes de voltar para o cinema na década de 2000. O longa-metragem O silêncio antes de Bach (Die Stille vor Bach, 2007) invoca a potência eterna da música de Johann Sebastian Bach por meio de uma elegante composição de episódios documentais e fictícios. O curta Mudança (Mudanza, 2008) utiliza a casa familiar do poeta Federico García Lorca, assassinado pelas forças fascistas durante a Guerra Civil Espanhola, para refletir sobre o legado do franquismo na Espanha atual. Seu longa-metragem mais recente, Informe geral II - O novo roubo da Europa (Informe general II: el nuevo rapto de Europa, 2015) utiliza registros de uma conferência no Museu Reina Sofía sobre as dinâmicas da União Europeia para retratar uma Espanha dividida e consumida por um neoliberalismo feroz que guia as decisões de líderes mundialmente. Quarenta anos após a morte do ditador, Portabella mostra que os vampiros estão agora mais dispersos. A Sessão Mutual Films de novembro de 2024 é dedicada às memórias do compositor franco-chileno Jorge Arriagada (1943-2024), da artista e cineasta alemã-argentina Narcisa Hirsch (1928-2024) e do cineasta e produtor norte-americano Roger Corman (1926-2024).
[1] Citado no livro de Portabella Impugnar las normas: intervenciones sobre arte, cine y política (editado por Esteve Riambau), que foi publicado em 2024.
[2] O "Manifesto da pornomiséria" pode ser encontrado online, no catálogo da mostra A Caliwood de Luis Ospina: cinema colombiano de vanguarda, em uma tradução para português que foi feita por Natalia Christofoletti Barrenha. Catalogo em PDF [3] Citado no texto de Ospina "Vini, vídeo, vici. O video como resurreição", que também se encontra disponível em português no catálogo da mostra A Caliwood de Luis Ospina.
Agradecimentos da sessão:
Adrián Onco/Films 59, Anne Wabeke/Rotterdam International Film Festival, Claudio Leal, Esteve Riambau, Jonathan Rosenbaum, Karen Lamassonne, Lina González Vergara, Lluís Miñarro/Eddie Saeta s.a.u., Lúcia Monteiro, Mariona Bruzzo/Filmoteca de Catalunya, Marisa Merlo/Anacoluto, Mateus Araújo Silva, Natalia Christofoletti Barrenha, Nevena Desivojevic/Terratreme, Pedro Adrián Zuluaga, Richard Suchenski/Film Secession, Steve Macfarlane, Victor Guimarães
SINOPSES DOS PROGRAMAS Mudança + Puro sangue Agarrando pueblo (Os vampiros da miséria) + Vampir-Cuadecuc TEXTOS “Pere Portabella comenta Vampir-Cuadecuc” “Sangue nas mãos deles: Luis Ospina” AGENDA IMS PAULISTA 06/11/2024, quarta, 19h30 Mudança + Puro sangue Sessão apresentada por Aaron Cutler e Mariana Shellard 07/11/2024, quinta, 19h Agarrando pueblo (Os vampiros da miséria) + Vampir-Cuadecuc + debate com Claudio Leal e Lúcia Monteiro 10/11/2024, domingo, 17h30 Mudança + Puro sangue 30/11/2024, sábado, 15h30 Agarrando pueblo (Os vampiros da miséria) + Vampir-Cuadecuc Minibios dos convidados: Claudio Leal é jornalista, crítico e pesquisador, formado em jornalismo pela UFBA, em 2005, e mestre em meios e processos audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), em 2018. Colabora com críticas, perfis e ensaios nos cadernos Ilustrada e Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, para o qual escreveu sobre Pere Portabella e diversos outros artistas. Coorganizou os livros Cine Subaé: escritos sobre cinema (1960-2023) (Companhia das Letras, 2024, com Rodrigo Sombra), de Caetano Veloso, e Cancioneiro geral [1962-2023] (Círculo de Poemas, 2024, com Leonardo Gandolfi), de José Carlos Capinan. Organizou obras críticas do ensaísta e diretor Luiz Carlos Maciel (Underground, Edições Sesc, 2022) e do curador e artista plástico Emanoel Araujo (O universo de Emanoel Araujo, Capella Editorial, 2019). É autor do perfil biográfico em Dori Caymmi songbook: 80 anos de um cantador (org. Mário Gil, Edições Sesc, 2023). Doutorando na ECA-USP, estuda as relações do tropicalista Caetano Veloso com o cinema. Organizou um volume crítico sobre o diretor teatral José Celso Martinez Corrêa, a ser lançado em breve pelas Edições Sesc SP. Lúcia Monteiro é crítica, curadora e pesquisadora de cinema. Atua como professora do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde é também docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual, com o apoio da Faperj para desenvolver suas pesquisas sobre estética do cinema contemporâneo, ecocrítica e estudos do roteiro. Dentre as publicações coletivas que coorganizou, estão os livros Fordlândia: Suspended Spaces #5 (Relicário, 2023), que trata da cidade planejada por Henry Ford na Amazônia e dos cinemas amazônicos; Cinema: estética, política e as dimensões da memória (Sulina, 2019), reunindo textos na articulação entre cinema e história; e Palmanova. Victor Burgin (Form[e]s, 2016), em torno da obra do pesquisador e artista conceitual britânico Victor Burgin. Como curadora, idealizou as mostras África(s): cinema e revolução (Caixa Belas Artes, 2016), África(s): cinema e memória em transição (Caixa Cultural RJ, 2018) e A Caliwood de Luis Ospina: cinema colombiano de vanguarda (Caixa Cultural RJ, 2017). É também responsável pela curadoria da Mostra Cinema e Direitos Humanos, uma parceria da UFF com o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. Web site IMS - Sessão Mutual Films - Informações e ingressos Áudio do debate com Claudio Leal e Lúcia Monteiro |
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