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“Nossa cultura, a cultura deles:
Indianismo em Satyajit Ray e Rabindranath Tagore por meio de suas obras A esposa solitária e O ninho partido

 
O texto a seguir é uma tradução da segunda metade de um artigo que foi originalmente publicado em 2005, em inglês, na IndiaStar Review of Books. O título original do artigo de Kaustuv Sen faz referência ao livro de Satyajit Ray Our Films, Their Films (Nossos filmes, os filmes deles, 1976), uma coletânea de textos sobre o cinema indiano e internacional que inclui o famoso texto “Calm Without, Fire Within” (“Calma por fora, fogo por dentro”, 1963), também citado no artigo, sobre o cinema japonês de sua época.
 
Na relativamente pequena corte da literatura renascentista bengali, Rabindranath Tagore reinou como um colosso. E toda a família de Satyajit Ray estava entre seus cortesãos mais proeminentes. Tanto Upendrakishore quanto Sukumar, avô e pai de Ray, eram literatos bem conhecidos, e ambos consideravam Tagore um amigo próximo e mentor. A adulação foi mútua – Tagore até tentou imitar os versos brilhantes e sem sentido de Sukumar, mas desistiu por sua admiração. Além disso, os Rays eram membros ativos da Brahmo Samaj, a seita religiosa há muito liderada pela família Tagore. Ray foi, portanto, educado conscientemente nos moldes rabindricos clássicos, e sua educação culminou em uma passagem breve, mas profundamente influente, na Santiniketan, a universidade ao ar livre de Tagore. Sua abrangente filosofia de cinema, como talvez de vida, deveu-se muito à escola de pensamento de Santiniketan.
 
Os filmes de Ray mostram um foco notável nos mínimos detalhes e uma concentração tensa e calma, de modo que as menores ondas emocionais são acentuadas, bem como um esforço constante em direção a uma unidade orgânica. Nesses aspetos, o cineasta seguiu os ditames de seus dois grandes professores indianos, ambos homenageados por ele em documentários. Seu professor de arte Binode Behari Mukherjee (celebrado por Ray no curto documentário The Inner Eye, de 1972) lhe ensinou os princípios de “mínimo de pinceladas, aplicadas com máxima disciplina” e “calma por fora, fogo por dentro”. E, claro, o próprio Tagore (tema do documentário de média-metragem Rabindranath Tagore, de 1961), cuja inscrição ao jovem Ray na capa de um livro permaneceu com ele para sempre:

Viajei pelo mundo para ver os rios e as montanhas e gastei muito dinheiro. Esforcei-me muito, vi de tudo, mas esqueci de ver do lado de fora da minha casa uma gota de orvalho sobre uma pequena folha de grama, uma gota de orvalho que reflete em sua convexidade todo o universo ao seu redor.
 
Ray trabalhou numa Índia pós-independência e procurou o seu lugar numa aldeia global em rápido encolhimento. O mundo de Tagore, embora tenha recebido o impulso inicial para o despertar criativo através do contato com o pensamento ocidental pós-iluminista, graças aos britânicos, era essencialmente um mundo de classicismo sânscrito e védico. Seu pai, Debendranath, não queria que o jovem “Rabi” se misturasse com os europeus. Assim, apesar de viver no Raj britânico, aos dezessete anos Rabi não havia conhecido um britânico e o seu domínio do inglês era fraco. Suas tentativas de ler Tennyson e, mais tarde, Dante e Goethe em tradução para o inglês, terminaram em fracasso total. Ele nunca “tomou” nenhum desses escritores nesta fase inicial de sua vida, confessou mais tarde. Numa carta de 1921 ao tradutor e historiador britânico Edward Thompson, ele lamenta: “Você sabe que comecei a respeitar a sua língua quando tinha cinquenta anos. Já era muito tarde para eu ter esperança de conquistar o coração dela.”
 
As musas fundamentais de Tagore foram todas extraídas do panteão sânscrito. O incomparável Kâlidâsa e a poesia vixenuísta de Jayadeva foram seus companheiros constantes de infância. Em seu poema “Passando tempo na chuva” (“Passing Time in the Rain”), Tagore compara a poesia ocidental desfavoravelmente ao poema lírico Meghaduta (Mensageiro das nuvens, c. 4º–5º século d.C.), de Kâlidâsa, que originalmente invocou sua musa das monções:

Folheio alguns versos estrangeiros
 
Mas não encontro neles traços
 
Da sombra das monções, nem da chuva –
 
Nenhum som deste tamborilar sombrio,
 
Nenhum anseio indolente e profundo,
 
Nenhuma dor autoimersiva!
 
Tagore nunca conseguiu superar esse desconforto ao abraçar o Ocidente. Na meia-idade, ele queimou todos os papéis de seu avô, o príncipe Dwarkanath Tagore, provavelmente porque Dwarkanath era muito ocidentalizado e considerado por seu neto como um puxa-saco dos ingleses. Este homem notável, o capitão e empreendedor mais rico de Bengala, era um suave diplomata indiano no exterior, um conhecedor de boa literatura, arte e teatro em casa, um filantropo magnânimo e o fundador da família Tagore como Rabi a conhecia. Portanto, não há nenhuma menção dele na autobiografia de Rabindranath, Minhas reminiscências (Jibansmriti, 1912). Mais tarde na sua vida, Tagore escreveu numa carta à sua sobrinha, Indira Devi, ponderando sobre a morte e a reencarnação: “O meu maior medo é nascer na Europa – porque na Europa nunca há qualquer oportunidade de desnudar a alma de forma tão elevada. Eu provavelmente teria de trabalhar como escravo em alguma fábrica, banco ou parlamento.”
 
Embora sempre aberto a aprender com as tradições ocidentais, Tagore as considerava diferentes e inconciliáveis com as de sua terra natal. Suas diferenças percebidas estão resumidas neste parágrafo de Tagore sobre música:

O mundo diurno é como a música europeia – elementos consonantes e dissonantes são combinados para produzir uma harmonia geral. E o mundo noturno é como a nossa música indiana – um raga puro, comovente, solene e sem mistura... Eles se opõem um ao outro... Nós, indianos, vivemos no reino da Noite – somos sintonizados com a eternidade e a unidade. Nossas melodias são solitárias e únicas, enquanto a música da Europa é social e comunitária.
 
Por outro lado, quando Ray era solicitado a nomear suas principais influências musicais, ele citava Mozart, Bach, Beethoven e até Monteverdi. Em sua juventude, ele teve a maior coleção de música clássica ocidental de Calcutá e provavelmente da Índia. Desde cedo, assistindo aos jatras (dramas populares) da zona rural de Bengala, ele ganhou um respeito saudável pela mistura de várias formas de música. Isso culminou na trilha sonora de um de seus musicais infantis mais queridos, o filme As aventuras de Goopy e Bagha (Goopy Gyne Bagha Byne, 1968), onde há canções nas tradições rabindrinica, carnática, indiana clássica e mozartiana, bem como diversas melodias únicas de linhagem indeterminada. Numa entrevista no final da sua vida, Ray afirmou que embora desprezasse a música indiana quando jovem e mais tarde passou a gostar violentamente dela em detrimento da sua paixão pela música clássica ocidental, chegou a perceber que toda a música era realmente uma só. As suas conclusões contrastavam fortemente com a tensão Leste-Oeste inerente de Tagore.
 
Da mesma forma, no cinema, que ele considerava uma forma de arte essencialmente ocidental, as influências de Ray variaram de Jean Renoir, Mark Donskoi, Robert Flaherty, John Ford e Frank Capra a nomes como Jean-Luc Godard, Francois Truffaut e Akira Kurosawa. Ele cresceu com uma dieta inebriante de clássicos americanos, franceses e italianos e foi levado a abandonar a publicidade e seguir o cinema como profissão depois de ver Ladrões de bicicleta (Ladri di biciclette, 1948), do neorrealista Vittorio de Sica, em Londres em 1950. De forma mais ampla, apesar da influência de Tagore em toda sua família, a educação formal de Ray foi integralmente ministrada em inglês, primeiro na Ballygunge Government High School e depois na principal instituição educacional do Império Britânico fora da Grã-Bretanha, o Presidency College. Como Ray disse numa entrevista em sua meia-idade: “Tive uma educação ocidental, estudei inglês e, apenas nos últimos dez anos, me vi voltar cada vez mais à história do meu país, do meu povo, meu passado, minha cultura. . .”
 
Essa mistura perfeita de influências ocidentais e orientais se tornaria a marca registrada do cinema de Ray. Embora poucos neguem que Ray tenha feito filmes principalmente para o público bengali, sua tecnologia (na forma da câmera Arriflex e os métodos por ela ditados) era ocidental. Ray disse que o cinema é uma arte limitada pelo tempo, e que todos os filmes têm uma estrutura musical. Enquanto a estrutura da música ocidental é definida por uma diversidade de temas entrelaçados precisamente com o desenrolar do tempo, a música indiana é atemporal: Caracterizada por clima e tonalidade pré-determinados, cheia de improvisação, uma única ideia pode levar mais de uma hora para ser exposta. Era, portanto, impossível para Ray fazer filmes que ressoassem como os ragas indianos. Ele buscou grande parte de sua inspiração no delicado equilíbrio de emoções e temas do trabalho de Mozart, especialmente em A esposa solitária.
 
Além da estrutura abrangente do filme, seus temas e técnicas fotográficas podem ser atribuídos de várias maneiras a figuras fortes europeias. As grotescas máscaras desmembradas que aparecem para Charu em seu flashback onírico vêm diretamente de Federico Fellini, os jump cuts que Ray experimenta pela primeira vez na sua filmografia são emprestados de Godard e a série de imagens fixas que conclui o filme foi reconhecida por Ray como reminiscente do final do longa-metragem de estreia de Truffaut, Os incompreendidos (Les quatre cents coups, 1959).
 
Junto à metodologia, é quase inevitável que a interpretação de Ray, mesmo de uma obra essencialmente de sua época como O ninho partido, divirja do original, talvez de forma mais significativa ao longo desta dimensão da identidade nacional. Como seria de se esperar, Ray surge com uma receita mais cosmopolita e reconciliadora. Uma analise mais atenta de dois aspetos das obras será suficiente para ilustrar este ponto, o primeiro sendo a caracterização dos três personagens principais da história. Tagore fez de Charulata o espírito quintessencial da intemporalidade e unidade indiana. Sua prosa bengali simples e sem afetação e seu passado rural trazem à mente um verso famoso de Tagore, “Senti que a felicidade é muito fácil” (juba hala sukh ati sahaj saral), ao falar da beleza descomplicada que o autor encontrou nas aldeias ribeirinhas de Bengala. Bhupati, por outro lado, é manchado pela racionalidade europeia. Ele não consegue compreender os impulsos mais elevados de sua própria alma, muito menos as necessidades emocionais dos outros. E, finalmente, Amal funciona como o representante descuidado e ornamentado da tradição indiana morta. Seu estilo de escrita é florido e retórico, e seu personagem é, da mesma forma, muitas vezes exigente e grosseiro, como em suas repetidas demandas por presentes triviais.
 
No final, apenas Charu permanece constante. Tagore amplia as rachaduras em cada um dos personagens masculinos no livro até que eles se quebrem e desmoronem. A obsessão de Bhupati pela razão seca o deixa cego para as maquinações daqueles ao seu redor – ele fica materialmente despojado pela deserção de seu gerente de negócios enganoso Umapada e emocionalmente despojado pela descoberta da infidelidade de Charu (em pensamento, se não em ação). Em algum momento, ele tropeça ao tentar se aproximar do ideal da Índia simples. Bhupati Majumdar, que entendia tão pouco de literatura que repreenderia até mesmo a obra do autor preferido de sua esposa, Bankim Chandra Chatterjee, começa a escrever uma prosa meticulosa em um caderno particular e, finalmente, busca a aprovação de Charu por seus esforços ingênuos. Da mesma forma, para Amal, com o conhecimento da verdadeira relação entre Charu e ele vem a gravidade da compreensão sobre as deficiências de seu próprio caráter. Ele também tem que se afastar, neste caso fisicamente, ao partir para a Inglaterra para se tornar advogado, finalmente cedendo ao altar da razão de Bhupati. O que emerge dessas ruínas é a gravidade paciente e eterna do espírito tácito de Charu, o centro emocional da novela.
 
As simpatias de Ray estão alinhadas de maneira diferente, mesmo que sutilmente. Bhupati é essencialmente o mesmo personagem em Ray e em Tagore, representando a razão ocidental, algo talvez até um pouco mais acentuado no filme. É Amal, no entanto – um personagem mais transparente, inocente e simpático no filme do que no livro – e não Charu, que simboliza a velha Índia poética e emocional. Amal, com sua prosa sânscrita, é ele mesmo o que chama de Manda, a esposa de Umapada, no filme – Prachina, ou do molde antigo e clássico. E Charu, mais uma vez o exemplo do criador para o seu público, é agora Nabina, uma mistura do antigo e do novo, do oriental e do ocidental. Ela é dotada tanto de uma inclinação mental incisiva e racional quanto de poesia e diversão. Menos ingênua do que em Tagore, suas faculdades racionais são destacadas por Ray com grande efeito em uma cena introdutória em que ela joga cartas com Manda. Num simples jogo, Manda, a mulher tradicional, mostra obtusidade e excitação infantil, e não capta o elemento governante do acaso aleatório. Charu, por outro lado, conhece e é indiferente aos altos e baixos do jogo, pois sabe que ele é ditado puramente pela sorte e não pela agência humana. Mais tarde no filme, ela sugere a Bhupati uma aliança de iguais, oferecendo-se para editar a metade cultural e literária de um jornal (em bengali) se ele supervisionasse as partes política e científica (em inglês).
 
E no final, Ray não faz com que Bhupati ou Amal se movam em direção a um meio-termo. Bhupati nunca se dedica a atividades literárias no filme, mas fica entusiasmado apenas com a sugestão de abrir outro jornal. Amal, embora parta, nunca vai para a Inglaterra, nem desiste de seu estilo despreocupado de outrora. Ele sai para encontrar com um amigo em Madras (atualmente Chenai), de onde envia cartas ocasionais e abruptas. É apenas na personagem de Charulata que as duas forças antagônicas se reconciliam harmoniosamente e que o Oriente e o Ocidente se encontram.
 
O segundo indicador dessas diferenças interpretativas está nas conclusões das duas obras. A novela termina com uma dupla rejeição. Bhupati, entristecido, derrotado e incapaz de suportar a ideia de viver com uma esposa cujos afetos estão em outro lugar, opta por fugir de casa para assumir um cargo editorial no sul da Índia. Em um final comovente, as últimas palavras trocadas entre marido e mulher são:

Charu: “Leve-me com você. Não me deixe aqui.”
 
Bhupati: “Não, Charu, não posso fazer isso.”
 
Toda a cor sumiu do rosto dela, deixando-o branco e seco, como um pedaço de papel. Com as mãos cerradas, ela segurou a cama. Imediatamente, Bhupati disse: “Venha, Charu, venha comigo”.
 
“Não”, disse Charu, “deixe estar”. (thak)
 
A triste palavra bengali, thak, com a qual a novela termina encarna a incompatibilidade final entre a Índia simples e a Europa racionalmente construída, como Tagore as enxerga. Há muita simpatia e ternura entre elas, muita história, mas cada uma deve seguir o seu caminho, sendo os dois caminhos inconciliáveis.
 
O final de Ray, uma obra-prima na história do cinema, sugere a possibilidade de a nova Índia ser capaz de conviver com a razão ocidental. Quando um debilitado Bhupati volta à sua casa escura, Charu o convida duas vezes a entrar. Um servo acende uma lâmpada e a segura no alto. Bhupati se aproxima de Charu e eles estendem as mãos um para o outro, os dedos se aproximando cada vez mais. Pouco antes das mãos se tocarem, Ray congela o quadro. O filme então termina com uma série brilhante de cinco imagens: um close-up do rosto de Charu, sombrio, mas imperturbável. Uma imagem semelhante do rosto de Bhupati, de luto e anseio. Uma imagem do criado segurando a lâmpada. Uma imagem de Charu e Bhupati parados e com as mãos estendidas um para o outro, iluminados pela lâmpada. E, finalmente, um plano geral da mesma cena, fotografada da varanda, enquanto os créditos finais começam a rolar.
 
Uma imagem vale mais que mil palavras, e as sugestões sutis de um filme tão evocativo como A esposa solitária não podem ser totalmente capturadas em palavras. No entanto, devemos tentar, e aqui está uma interpretação relativamente simples de pelo menos um aspeto deste final. Charu, que está bastante calma durante o furacão de revelações que atinge Bhupati, estende o convite à reconciliação. A nabina não vê dicotomia entre seu amor por Amal, o tradicional, e sua devoção a Bhupati, o racional. Bhupati, como em Tagore, é destruído pela infidelidade emocional dela e presumivelmente nutre pouca esperança para o futuro. No entanto, ele estende sua própria mão em troca. As mãos nunca se tocam, mas as sementes do desejo de reaproximação nascem e se expressam. O final é incerto, algo relevante à época de Ray, em que a Índia estava apenas estabelecendo uma identidade pós-independência, onde deve negociar nos seus próprios termos com as potências euro-americanas. Haverá sempre tensões inerentes e grandes diferenças entre a nova Índia e o Ocidente, mas há igualmente a possibilidade eterna de reconciliação e coexistência harmoniosa. A história de Charulata, tal como a história da Índia, deve permanecer incompleta, terminando em um movimento em suspenso.
 

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