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“Kawabata e a máscara de celuloide”
 
O texto a seguir foi originalmente escrito em 1993 por Aaron Gerow , atual professor de Línguas e Literaturas Orientais e de Cinema e Mídia na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Gerow é autor de diversos textos sobre a obra do autor Yasunari Kawabata e sua relação com o cinema, além do livro em inglês A Page of Madness: Cinema and Modernity in 1920s Japan , que é considerado por muitos como o estudo definitivo sobre o filme Uma página de loucura. O texto a seguir vem de um artigo acadêmico chamado “Celluloid Masks: The Cinematic Image and the Image of Japan” que coloca em diálogo os temas cinematográficos nas obras de Kawabata e outro grande autor japonês de sua geração, Jun’ichiro Tanizaki (1886-1965), talvez melhor conhecido por Em louvor da sombra (In'ei Raisan, 1933) ­– ensaio que valoriza estéticas e tradições japonesas. A tradução do inglês para português deste trecho do artigo foi feita com o consentimento de Gerow. As citações de passagens de obras literárias de Kawabata foram tiradas das traduções brasileiras dos livros Contos da palma da mão (Tenohira no shosetsu, 1971) e O país das neves (Yukiguni, publicado originalmente em 1937 e revisado pelo autor em 1947), que foram publicadas pela Editora Estação Liberdade entre um total de 12 livros do autor.
 
Yasunari Kawabata foi um ávido cinéfilo ao longo dos seus anos formativos e publicou várias críticas cinematográficas que analisaram os filmes de muitas nações de forma perspicaz. Assim como Tanizaki antes dele, Kawabata também se envolveu na produção cinematográfica, pois escreveu o roteiro do filme Uma página de loucura, dirigido por Teinosuke Kinugasa em 1926, além de compor contos de ficção que utilizavam o cinema como tema. Todos esses textos evidenciam uma concepção singular da imagem cinematográfica e sua relação com a subjetividade do espectador.
 
Por exemplo, grande parte do roteiro de Uma página de loucura – que conta a história de um velho zelador que trabalha em um manicômio onde sua esposa foi internada – centra-se em atos de observação que estão frequentemente implicados em projetos de fantasia e realização de desejos (por exemplo, o zelador “vendo” pela janela seu desejo de ganhar um elaborado presente de casamento para sua filha) ou de desejo escopofílico (os pacientes masculinos sendo excitados pela performance da dançarina). A manifestação do desejo como desejo especular está intimamente entrelaçada com a definição particular de Kawabata do signo visual fílmico. O que é intrigante no uso que Kawabata faz das técnicas cinematográficas do flashback e do plano inserção em Uma página de loucura é como ele mina sua alteridade codificada por meio de representações de fantasia especular.
 
Em cada uma de duas das sequências de fantasia do zelador (a primeira sendo a de ganhar um prêmio na loteria e a segunda sendo uma tentativa de fuga com a esposa), o início da sequência não é marcado – é só no final da fantasia que a sua qualidade irreal é definitivamente indicada. Embora a subversão das fronteiras narrativas entre o passado e o presente, o diegeticamente real e o diegeticamente irreal, não elimina de forma alguma a narrativa em si (a fantasia do zelador é, afinal, a sua narrativa preferida), ela aponta para uma situação em que o signo cinemático não é hierarquicamente subordinado à narrativa, reduzido a funcionar como um marcador codificado da diferença narrativa, mas ganha um estatuto igual ao da narrativa porque a narrativa foi redefinida como o fluxo associativo de imagens. A primeira das fantasias do zelador pode ser vista como uma alegoria compacta do cinema, não apenas pela sua articulação entre desejo e especularidade e pelo uso do enquadramento e de luz e sombra, mas também na forma como uma imagem (por exemplo, a banda de músicos) leva a outra (o zelador ganhando na loteria anunciada pela banda) através de sistemas de fantasia especular. O signo fílmico como espetáculo não é totalmente redutível às funções narrativas, precisamente porque todos os diferentes projetos narrativos que ele pode realizar (significando passado e presente, realidade e fantasia) acabam se tornando equivalentes na sua redução ao mesmo signo material e especular.
 
Um dos “contos da palma da mão” de Kawabata, “Os inimigos” (“Teki”, 1924), foi escrito na mesma época do roteiro de Uma página de loucura e ecoa essa interpretação da representação cinematográfica. [Nota do tradutor: Os contos são um agrupamento de mais de 140 histórias que Kawabata escreveu ao longo de sua vida e que o autor achou breves o suficiente para “caber na palma da mão”.] A curta história de apenas duas páginas é centrada em uma atriz que assiste a um de seus filmes em uma sala escura. Como Kawabata descreve, porém, quando é projetada a cena em que sua personagem perde a virgindade (shojo o ubawareru), acontece o seguinte:
 
Ela que assiste e ela que é observada; as duas choram ao mesmo tempo. À medida que o filme se desenvolve, as duas sentem, como um único ser, a mesma dor de terem tido sua virgindade roubada.
 
Não que ela recordasse aquele terrível momento do passado, mas sente agora, nesse instante, que o revive no seu próprio corpo. Quando filmava a cena, ela também não representava, sentia no seu corpo aquela experiência dolorosa do passado.
 
Isto quer dizer que sua virgindade fora violentada três vezes. Em outras palavras, por três vezes fora virgem.
 
(Pág. 59 de Contos da palma da mão, com a tradução do japonês para português feita por Meiko Shimon)
 
Essa representação da experiência do espectador de cinema é ao mesmo tempo uma evocação maravilhosa do poder do cinema de reescrever a história (para fazer acontecer novamente o que só pode acontecer uma vez), bem como um reconhecimento do poder material do signo especular. Se ao assistir à imagem cinematográfica a atriz pode reencenar a sua experiência passada como se fosse a primeira vez, é menos porque a qualidade indicial da imagem apaga o significante numa representação perfeita do acontecimento pro-fílmico, mas porque o signo cinematográfico tornou-se uma realidade e tem uma existência própria à parte da atriz – é a atriz duplicada. Esta qualidade da imagem cinematográfica de exceder a sua função denotativa através do espetáculo (imagem como imagem) governa a cinematicidade metafórica de “Os inimigos” e Uma página de loucura.
 
A atriz em “Os inimigos” não é simplesmente dominada pela imagem de si mesma: sua subjetividade é fissurada e tornada problemática. O que parece estruturar o conto não é a narrativa da teoria do cinema ocidental em que o filme sutura um sujeito unificado e dominador, mas sim o seu oposto. O poder e a materialidade do signo cinematográfico excedem qualquer ficção de controle por parte do espectador e, portanto, minam qualquer construção de um sujeito unificado em torno de um ponto de vista dominante. Enquanto Uma página de loucura está imbricado em projetos de desejo e de sua realização, “Os inimigos” implica no que é enunciado sempre ultrapassa o controle de qualquer enunciador unificado. Em ambas as obras, o espectador de cinema não é diferente do louco, algo que Uma página de loucura implica ao fazer com que o espectador compartilhe o devaneio da dançarina no início do filme, antes que ele seja codificado como apenas uma fantasia. O que torna o meio cinematográfico fascinante e assustador na visão de Kawabata é a capacidade do fluxo associativo de imagens especulares de ganhar vida própria, além da narrativa ou do comando de uma subjetividade enunciativa (o espectador ou o narrador), deixando o espectador passivo (dominado), mas (loucamente) extasiado.
 
Essas questões de representação e subjetividade são expressas metaforicamente no ícone da máscara que aparece tanto no filme, quanto no centro de outro conto de Kawabata, “O homem que não ri” (“Warawanu otoko”, 1928), que toma as filmagens de Uma página de loucura como subtexto de sua ficção. No filme, as máscaras sorridentes aparecem no final do epílogo da última fantasia do zelador, que as distribui à sua esposa e aos demais pacientes para fornecer a solução imaginária que não conseguiu criar na realidade. No conto literário, as máscaras figuram como a tentativa do roteirista de proporcionar um final feliz a uma narrativa genuinamente sombria. Em suas palavras: “Pretendia criar um ambiente alegre no final desta história angustiante e não estava conseguindo. Queria, ao menos, envolver a realidade com belas máscaras sorridentes”. (Pág. 250 de Contos da palma da mão, tradução de Meiko Shimon)
 
Observa-se que, em “O homem que não ri”, se não fosse possível encontrar máscaras reais, a alternativa proposta do roteirista é de usar máscaras feitas de celuloide. As máscaras então funcionam aqui para fazer uma analogia com a promessa do cinema de realizar desejos. O texto utiliza essa analogia para comentar a imagem cinematográfica. É evidente que, embora as máscaras representem a esperança do roteirista para o futuro (onde todos exibirão igualmente rostos semelhantes aos das máscaras), elas são também sua tentativa de encobrir literalmente uma realidade mais sombria.
 
O conto de Kawabata não para aqui. O escritor visita sua esposa no hospital, onde os filhos a obrigam a colocar uma das máscaras. Ao retirá-la, o contraste entre seu rosto e a máscara exagera sua feiura para o escritor. Quando as crianças tentam forçá-lo a usar a máscara, ele se recusa, notando tanto seu desejo de não parecer feio para os outros, quanto um certo medo incorporado na máscara. Nas palavras do personagem:
 
Senti medo da bela máscara. O medo me induziu a dúvidas: o rosto da minha esposa que estivera sempre ao meu lado, com seu sorriso meigo, não teria sido o de uma máscara? O sorriso da mulher não seria uma arte como a desta máscara?
 
A culpa é da máscara. É a culpa da Arte.
 
(Pág. 253 de Contos da palma da mão, tradução de Meiko Shimon)
 
A implicação aqui é que o perigo do cinema, incorporado na máscara, deriva não apenas do seu douramento escapista da realidade, mas também da força do seu modo de significação para transformar a realidade numa mera outra imagem. Mas embora Tanizaki estivesse fascinado por este aspeto do cinema, a atitude em relação ao cinema que Kawabata evidencia em seus três textos, corporificados na máscara, é mais fundamentalmente ambivalente: ao mesmo tempo que o cinema proporciona sedução especular, ele é visto como uma ameaça de minar o sujeito e a divisão entre signo e referente, sujeito e objeto.
 
Apesar – ou talvez por causa – desta ambivalência em relação ao cinema, a sétima arte não figurou na história da produção literária de Kawabata apenas como um breve flerte, mas como uma influência fundamental no seu estilo e conteúdo. Basta olhar para a parte mais célebre daquele que é o texto mais famoso de Kawabata, o início do seu romance O país das neves, para ver o reaparecimento da concepção de cinema do autor. O cinema enquadra o livro ao aparecer tanto no primeiro, quanto no último episódio (quando uma sala de cinema pega fogo), mas é na primeira cena que Kawabata se concentra com mais força na prática do espectador cinematográfico. Ele coloca em primeiro plano a alegoria cinematográfica no ato do protagonista do livro, Shimamura [um crítico e aficionado de balé ocidental], de observar a jovem mulher Yoko durante uma viagem de trem, comparando a cena no espelho a uma dupla exposição no cinema (eiga no nijii utsushi) que conta com paisagem e personagens dramáticos (tojojinbutsu). A alegoria é reforçada pela configuração espacial do olhar: a capacidade de Shimamura de desempenhar o papel de voyeur, olhando sem ser olhado:
 
No fundo do espelho, corria a paisagem do entardecer, isto é, o que se via através do vidro e o que se refletia no espelho moviam-se como imagens sobrepostas de um filme. Os personagens e o cenário não tinham nenhuma relação entre si. Além disso, sendo eles de uma fugacidade translúcida, e a paisagem de uma fluidez vaga de cair de tarde, a fusão de ambos desenhava um mundo simbólico. Particularmente, quando os últimos raios de sol da mata iluminaram em cheio o rosto da moça, Shimamura chegou a sentir o coração palpitar diante daquela beleza inexprimível.
 
(Pág. 14 de O país das neves, tradução do japonês feita por Neide Hissae Nagae)
 
Se o que Shimamura vê na janela é uma espécie de filme, é um filme definido por um fluxo associativo de imagens imbricadas num desejo escopofílico que ultrapassa o domínio do sujeito – a versão de cinematicidade também aparente em Uma página de loucura e nos dois “contos da palma da mão”. Como uma máscara sobreposta a um rosto, a cena dentro do trem é colocada sobre o cenário que passa pela janela, os dois se fundindo em “um mundo simbólico”. Assim como o rosto da esposa ameaça tornar-se uma máscara em “O homem que não ri”, o que está em cima e o que está em baixo nestas camadas de imagens – o que é o real e o que é uma representação – é colocado em dúvida. A visão de imagens que pareciam fluir com “beleza inexprimível” torna-se puro espetáculo na medida em que “enquanto Shimamura olhava compenetrado, foi se esquecendo da existência do espelho e começou a pensar que a moça flutuava na paisagem do entardecer”. (Pág. 14-15)
 
Esse esquecimento não significa a transparência do signo perante o referente, muito pelo contrário: o poder da imagem de obstruir os meios pelos quais se relaciona indicialmente com o seu referente. Mas embora seja claro que Shimamura possui uma espécie de poder ingênuo do olhar através de seu aparato voyeurístico, exemplificando seu esforço para estabelecer controle sobre o mundo ao seu redor ao reduzi-lo a um objeto de contemplação distanciada, seu prazer especular é pago por – ou mesmo deriva de – uma certa passividade castrada: “Shimamura não se apercebera de quão atrevido era ao ficar tanto tempo olhando de modo furtivo para Yoko, provavelmente por estar preso à força irreal do espelho da paisagem ao entardecer”. (Pág. 15)
 
A imagem espelhada de forma cinematográfica excede qualquer sujeito enunciador, ganhando poder sobre Shimamura através do puro fascínio especular de sua apresentação. Se Shimamura é um personagem exemplar da obra de Kawabata, é porque a maioria de seus protagonistas são espectadores cinematográficos semelhantes, capazes de enfrentar o mundo apenas através de tratá-lo como um espetáculo visual a ser desfrutado passivamente. O próprio texto é então um registro do fluxo de imagens que passaram diante de seus olhos.
 

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