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As duas faces de um restaurador: O trabalho de Ross Lipman
 
Thom Andersen, Kenneth Anger, Charles Burnett, Bruce Conner, John Cassavetes, Julie Dash, Barbara Loden, John Sayles e Orson Welles são alguns dos artistas cujos filmes passaram pelas mãos de Ross Lipman, um dos mais importantes restauradores norte-americanos da atualidade. Lipman - nascido em Chicago, em 1963 - começou como cineasta independente e experimental, antes de mergulhar no ramo da restauração. Quando entrou para o UCLA Film and Television Archive [Acervo de Cinema e Televisão da Universidade da Califórnia, Los Angeles) em 1999, sua carreira no cinema completava dez anos. Na época, as restaurações do acervo concentravam-se em filmes narrativos hollywoodianos, sendo esse foco alterado durante os 16 anos em que Lipman trabalhou na instituição, aumentando a presença de cinema independente e experimental nos projetos.
 
A perspectiva de Lipman sobre restauração, descrita em diversos artigos e entrevistas, trata a prática tanto sob seus aspectos artísticos quanto técnicos. Sendo um filme um compendio de ideias (do roteiro, da direção, da trilha sonora), materiais (a câmera, o gravador, a película, o vídeo) e situações diversas (condições de pré-produção, produção, pós-produção e distribuição) o restaurador precisa levar em consideração cada um desses aspectos para que o resultado seja o mais próximo possível da obra idealizada pelo artista. Ainda assim, Lipman defende que toda restauração é uma nova versão da obra original, considerando que mudanças tecnológicas e a perda de informação com o decorrer do tempo impossibilitam a criação de um gêmeo idêntico.
 
Com isso, ele desenvolveu o conceito de "Zona Cinza", ou seja, "um território desconhecido onde o preservacionista precisa tomar decisões, quando não existem guias definitivos deixados pelos cineastas. As escolhas feitas podem diferenciar-se entre seguir ou não fielmente o espírito da obra, consequentemente determinando a experiência vivida pelo espectador ao assistir o filme." Lipman elabora que para conseguir uma reprodução fiel um restaurador deve operar em um modo artesanal, usando uma visão subjetiva e assim, alcançar um meio termo entre a arte e a ciência.
 
Na segunda edição do evento bimestral Sessão Mutual Films, Lipman virá a São Paulo e Rio de Janeiro para apresentar projeções em DCP de dois filmes que ele restaurou em película e supervisionou a remasterização digital durante os anos em que trabalhou na UCLA - A conexão de Shirley Clarke, de 1961 (restaurado em 2004) e Os tempos de Harvey Milk de Rob Epstein, de 1984 (restaurado em 1999). Ele também realizará, no contexto de seu trabalho artístico, uma performance de live cinema chamada O livro do Paraíso não tem autor, de 2010.
 
A conexão é o primeiro longa-metragem de Shirley Clarke, uma artista multifacetada que estudou dança moderna e migrou para o cinema ao investigar formas de registrar cinematicamente a dança. Com o mesmo espírito performático de seus primeiros filmes, A conexão - baseado na peça homônima de 1959 de Jack Gelber, encenada originalmente pelo grupo teatral Living Theater - explora ironicamente a ideia de cinema direto ao retratar um jovem cineasta e seu cinegrafista, investidos em documentar um grupo de artistas e músicos de jazz viciados em heroína, em uma quitinete nova-iorquina.
 
A coreografia frenética e rodopiante da câmera 35 mm reproduz tanto o ritmo agitado dos viciados que esperam ansiosamente a chegada do traficante ("a conexão"), quanto a instabilidade da dupla que os documentam, levando o espectador a examinar sua própria relação com as situações representadas na tela. A limpeza cristalina realizada por Lipman na restauração, após uma longa busca pelo negativo original, enfatiza a meticulosa visão de Clarke sobre a performance e o registro. A restauração de A conexão e dos outros filmes de Clarke ajudaram a colocar a cineasta em seu devido lugar de prestígio como pioneira do cinema híbrido.
 
Antes de sua restauração, Os tempos de Harvey Milk já era uma obra renomada, vencedora do Oscar de Melhor Documentário de Longa-Metragem de 1985. O retrato extensivamente pesquisado de Harvey Milk, primeiro político abertamente gay eleito no estado da Califórnia - finalizado seis anos após seu assassinato em 1978 - foi composto por uma série de entrevistas realizadas por Epstein em 16 mm e diversos materiais de arquivo em vídeo. O filme, dirigido por um pioneiro no registro cinematográfico do protagonismo gay nos Estados Unidos, existia apenas em cópias 16 mm, até começar o trabalho de restauro de Lipman, que considerou apropriado ampliar a obra para 35 mm, justificando a transferência ao dizer que Harvey Milk é "história escrita em uma grande tela".
 
Diferentemente de A conexão (cuja diretora havia falecido em 1997), Epstein, estando vivo, teve grande participação nas decisões tomadas por Lipman durante a restauração de seu filme. Entre estas decisões, novas transferências dos materiais em vídeo foram realizadas devido a insatisfação do diretor com as transferências existentes. A nova versão, com cores menos saturadas, foi usada apenas em algumas cenas para não descaracterizar o aspecto típico da época. A trilha sonora foi modificada do original em mono - pois 16 mm é um formato que possibilita apenas um canal de som - para o idealizado em estéreo. Dez anos após a conclusão da restauração, as cores do filme foram ainda mais refinadas com novas ferramentas digitais para a criação da versão digital de alta resolução. Os tempos de Harvey Milk caracterizou-se como uma restauração com mudanças significativas do material original - e sob a perspectiva tanto do restaurador como do cineasta foram mudanças para melhor.
 
Da mesma maneira que o conhecimento adquirido por Lipman na realização de seus próprios filmes influenciaram seu trabalho técnico de restauração, as intensas pesquisas que passou a fazer sobre os filmes que restaurou, influenciaram sua obra artística subsequente. Seu fascínio inicial pela degradação da matéria, manifesto sob um viés estrutural e concreto em seus filmes experimentais, tomou um rumo distinto voltando-se para extensivas pesquisas históricas e ontológicas sobre o significado do registro visual, em suas performances de live cinema, nas quais o artista lê ao vivo o roteiro de sua pesquisa enquanto projeta imagens de arquivo.
 
As performances de Lipman são a síntese de seu trabalho como artista e restaurador, pois expõem tanto as intensas pesquisas que realiza no processo de restauração de filmes, quanto suas próprias indagações morais e estéticas sobre o material pesquisado. Na performance O livro do Paraíso não tem autor, ele explora o material de arquivo audiovisual sobre a tribo filipina Tasaday que viveu em total isolamento por milhares de anos até ser descoberta durante o governo de Ferdinand Marcos em 1971. Lipman cria uma narrativa filosófica que investiga o impacto do contato dos Tasaday com a civilização moderna e como sua história é criada e recriada ao ser explorada intensamente pela mídia global da época.
 
As pesquisas que Lipman exerce durante o processo de restauração trazem novas abordagens e recontextualizações de filmes, aproximando o grande público da história do cinema e do campo da restauração. O mesmo ocorre com sua obra performática que busca incessantemente uma nova visão do passado. A apresentação de suas duas faces em diálogo expõe um campo de ação emergente que não só resgata obras deterioradas fisicamente pelo tempo, mas também, muitas vezes, reforça o valor da memória, tanto individual quanto coletiva.
 

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TONS DE CINZA - UMA ENTREVISTA COM ROSS LIPMAN
 

 
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