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66
(Sixty Six)
Lewis Klahr
EUA, 2015, 90 min, DCP

 
66 é um filme-colagem criado a partir de recortes de revistas, propagandas e histórias em quadrinhos que evocam a cultura pop da década de 60. O artista norte-americano Lewis Klahr (nascido em 1956) organiza o filme, situado em Los Angeles, em doze capítulos autônomos que correspondem aos meses de 1966 e fazem referencias à mitologia grega, em especial, ao mito do rio Lete, cujas águas causam o esquecimento. O estilo elíptico de 66 é característico da obra cinematográfica de Klahr (que adotou o digital na última década, após anos trabalhando em Super 8 e 16 mm), assim como imagens em stop motion de figuras arquetípicas femininas e masculinas, cujos movimentos são animados por uma sonoplastia composta por ruídos, música pop e trilhas sonoras de outros filmes e séries de televisão.
 
O tom de 66 é estabelecido de início com uma frase de Paul Éluard e André Breton: "Dá aos sonhos que esquecestes o valor daquilo que não conheces." No capítulo "Icor", uma voz feminina guia o protagonista (talvez um fugitivo, talvez um detetive) que parece imerso em uma investigação, a qual não temos acesso. Em "Helena de T", acompanhamos a vida boemia de uma jovem loira, ou lembranças de uma mulher que envelhece, envolvidos por uma música luxuriante que delineia a dinâmica sedutora entre a protagonista e seu ambiente. A ação é sugerida por objetos como cigarros, sofás, flores e espinhos. Outros capítulos, como "Dia 19 de agosto, 1966: Júpiter envia uma mensagem" ou "Ambrosia", são mais impressionistas e singelos e expressam apenas o sentimento de um momento. Os capítulos de 66 são dedicados a pessoas próximas do artista, enfatizando a qualidade efêmera da passagem do tempo. O filme terá sua estreia brasileira no IMS.
 

"Era Estranha: Lewis Klahr sobre 66"
 
A entrevista a seguir com Lewis Klahr foi conduzida pelo crítico e programador norte-americano Jordan Cronk e publicada originalmente em uma versão maior em inglês, em 2016 na revista Cinema Scope - "Era Extraña: Lewis Klahr on Sixty Six", logo após a estreia mundial de 66 no Museu da Arte Moderna (MoMA,) em Nova Iorque. A tradução foi feita com o consentimento do autor.
 
Por Jordan Cronk
Publicada originalmente na Cinema Scope, edição #66, 2016
 
Cinema Scope:
Como foi que você descobriu o que era e o que não era 66?
 
Lewis Klahr: Eu não descobri! Tive que resolver isso ao longo do processo, que é como eu mais gosto de trabalhar. Quando a sensação de descoberta é fresca para mim, é fresca para meu público também. Mas eu tive que refletir muito, em termos de orientação, isso só para o título do filme. Eu sabia que queria 12 filmes curtos, ou capítulos, que sugeriam os meses do ano de 1966. Essa informação, por sua vez, indicou que estava construindo um filme de longa-metragem, com duração que exigia uma dinâmica geral de diferença, contraste, repetição, acumulação associativa e eco entre os filmes individuais. Eu também sabia que cada filme casaria mitologia grega com imagens da década de 1960.
 
Scope: Então uma narrativa começou a se formar enquanto você estava definindo as imagens e os personagens de 66?
 
Klahr: Eu não chamaria de uma narrativa, exatamente, mas de uma forma poética, algo que foi modelado gradualmente. Ao longo da criação de 66 houve um tipo de diálogo entre os filmes já feitos e os filmes a fazer. Por exemplo, "A idade de prata" utiliza os mesmos personagens e a arquitetura icônica de Los Angeles, usados em "Icor", "Orfacles" e "O diário de Saturno", mas tendo sido feito após estes três, "A idade de prata" leva as imagens em uma direção climática diferente. Antes dele, eu tinha utilizado personagens - que tirei de uma história em quadrinhos baseada na série de TV A lei de Burke (1963-66) - para evocar uma sensação da vida mundana cotidiana, com pouca referência à atividade criminal. Em "A idade de prata" eu ativei as origens criminais dos personagens, principalmente ao incluir no curta uma série de cofres vazios com suas portas abertas. Vale a pena observar que a sequência destes filmes em 66 não segue a ordem de suas criações. Uma das minhas preocupações foi o lugar preciso de cada filme na sequência de projeção.
 
Scope: Então a ordem de projeção é essencialmente uma tentativa de fazer uma narrativa coesa entre os vários filmes individuais?
 
Klahr: Uma experiência coesa, uma paisagem mental associativa, um devaneio que acumula, mas que não chamaria de narrativa, mesmo que isso seja certamente um de seus registros.
 
Scope: Vamos conversar sobre a música e o desenho de som, que são partes importantes do filme.
 
Klahr: A música é sempre uma parte importante nos meus filmes. É mais um elemento de colagem para mim. Eu quero que o espectador ouça a música assim como eu a ouço, e assim como as imagens a modificam. É frequentemente diferente da maneira com a qual uma pessoa tipicamente escutaria à mesma música. Mas eu não queria que a trilha sonora de 66 focasse apenas na música. Para criar o alcance dinâmico e a sensação do cotidiano que são vitais ao poder descritivo de 66, precisava utilizar a música de trás para frente, efeitos sonoros, narração em off e a trilha sonora reeditada de um capítulo da série de TV Rota 66 (1960-64), que aparece em "A filha de Erígone". Também há um capítulo mudo, "Ambrosia", e é sempre um desafio incluir um filme mudo após filmes sonoros.
 
Scope: 66 é um filme de Los Angeles. Você sentiu mudanças em seus interesses ou em sua prática após ir para Los Angeles em 1998?
 
Klahr: Uma boa parte do que eu fiz, em termos de colagem, sempre teve uma forte relação com Hollywood. Eu já estava quase fazendo filmes sobre Los Angeles antes de me mudar para cá. O que é diferente sobre morar aqui é que, obviamente, agora tenho muito mais conhecimento de Los Angeles como uma cidade. Em 66 há vários tons de azul, porque a cidade é tão definida por seu céu e pela maneira comoo céu se apoia nos prédios. Há, também, vários aspetos da natureza que fazem parte do filme, como o lagarto que rasteja debaixo da flor em "A filha de Erígone". Eu sempre vejo esses lagartos quando caminho no Parque Griffith. Eu também descubro coisas no meu quintal, ou quando caminho - flores, folhas, galhos com espinhos, insetos mortos - todas fáceis de inserir nas minhas composições.
 
E, claro, há a luz. Agora eu filmo digitalmente na minha garagem, ao invés de usar película, que exige um quarto escuro. Eu posso, então, deixar a porta da garagem aberta (o que é muito prazeroso) e filmar uma mistura de luz do dia e luz artificial. No pôr do sol há um momento maravilhoso que acontece na pequena mesa que uso para montar as minhas composições - um momento muito breve, de alguns minutos no máximo - quando a luz do sol entra e cruza a mesinha. Em "Helena de T", a imagem final de um isqueiro com uma luz azul é um plano com time-lapse em que estou fotografando enquanto a luz do sol muda de intensidade e posição. Faz muito sentido para um filme sobre uma personagem envelhecendo um time-lapse no final, é uma compressão literal do tempo.
 
Um outro momento quando isso acontece é durante os créditos de "A idade da prata". A luz tem este caráter muito forte - é amarela e dura, é uma verdadeira luz de inverno. Sendo uma luz de janeiro, ela carrega um outro significado pessoal para mim, ligado à minha infância, e à minha imagem da Califórnia que era de frio brutal de inverno em Nova Iorque. Isso, obviamente, não é algo exposto para pessoas assistindo o filme, mas mesmo assim, é uma lembrança importante para mim. 66 está cheio deste tipo de autobiografia velada.
 
Scope: A cidade também parece te interessar do ponto de vista físico - sua arquitetura e complexo cívico. Há múltiplas imagens da Prefeitura, por exemplo, assim como vários pontos de referência do centro, junto às locações domésticas.
 
Klahr: Vemos frequentemente o prédio da prefeitura em "A filha de Erígone", em 1966 ele foi um dos prédios mais altos de Los Angeles. Certamente é o prédio mais icônico daquele período, no centro da cidade. Mas eu também estou pensando em Los Angeles como um lugar mítico. Uso fotografias arquitetônicas famosas de casas de meados do século XX, não apenas por sua justaposição gráfica com os personagens coloridos e chamativos de histórias em quadrinhos, mas também porque elas são mitológicas. As casas eram enfeitadas e preparadas para o momento de seu registro fotográfico, assim como um ator. E para muitas pessoas, elas ainda representam Los Angeles. E também a representavam na minha infância.
 
Scope: Muitas destas casas de meados do século agora têm conotações sinistras por conta de como foram retratadas em filmes hollywoodianos de suspense. Mas claro que você não as enxerga como espaços sinistros.
 
Klahr: Sim, elas têm muitas dimensões. São lindas. Em 1966 o design delas possuía esta sensação forte e utópica do futuro. Elas foram imitadas em subúrbios ao redor dos Estados Unidos. E eu cresci nos subúrbios. Há uma história nacional muita rica em torno destas casas como ícones de promessa, de progresso e de novidade durante os meados do século. Na verdade, a maioria dos meus personagens não são criminosos - são detetives. Dito isto, ainda existe uma sensação geral de seu contexto original que não é totalmente eliminada ou apagada pelo ato de corta-las e recontextualiza-las. O perfume do crime não sai completamente, embora eu raramente o ative.
 
Scope: Seu longa-metragem anterior, The Pettifogger (O chicaneiro, 2011), se passa no ano de 1963. 66 se passa em 1966. Você sente uma afinidade especial com a década de 1960?
 
Klahr: É verdade que eu me senti atraído pelos anos 50/60 durante a maior parte da minha vida adulta e como cineasta. Mas é uma atração que não é cristalizada. No início, quando eu tinha 20 e poucos anos, ela surgiu como uma saudade daquele período, um desejo de vivê-lo novamente, ou de viver dentro dele de forma imaginária como um jovem adulto, porque eu a vivenciei apenas quando criança. Após fazer várias obras autobiográficas, pensei que iria esgotar meu interesse, achava que teria me libertado de maneira catártica para poder lidar com o presente e o contemporâneo. Mas ao invés disso, o meu fascínio voltou e eu descobri a qualidade do passado no presente. Como a colagem é meu meio principal de expressão, os materiais que uso são antigos; eles têm uma certa liberdade porque são fora de moda. Comecei a me interessar, tematicamente, pela memória e pela história, e pela maneira como elas se cruzam, suas imprecisões, a quantidade de esquecimento que a lembrança tem. Cinquenta anos se passaram desde 1966, e agora o período soa mitológico. Minha lembrança tem menos a ver com memórias específicas e mais a ver com a compressão da experiência do tempo vivido.
 
Scope: O que te interessa especificamente sobre os anos 1963 e 1966?
 
Klahr: Ambos são anos de transição da década. São fronteiras em que o velho e o novo se sobrepõem, encontram fricção e produzem florescimentos frutíferos. São anos em que muitas coisas mudaram para mim pessoalmente - 1966 é um ano em que grande parte da minha relação com a cultura pop se estabeleceu, uma absorção que existe ainda hoje. Embora tenha havido vários desafios, foi um ano muito feliz. Os anos são muito distintos quando se é jovem, e pouco distintos pra mim atualmente! Talvez o que sinto mais falta e o que eu mais queria recapitular da minha infância é a vivacidade, então escolhi a lente da minha infância para lidar com a vida adulta e o presente.
 
Scope: Quando foi que você descobriu que queria estruturar e desenvolver os temas do filme através da mitologia grega?
 
Klahr: Quando eu fiz o capítulo "Letes" em 2009. Esta foi a primeira vez que eu casei imagens dos anos 1960s com a mitologia grega, e ficou evidente como eu poderia construir as minhas próprias versões dessas histórias. Antes e durante a realização do filme, li um livro sobre mitologia muito inspirador chamado As núpcias de Cadmo e Harmonia (1988) de Roberto Calasso, que levei muitos anos para ler pois é tão denso e rico, e conseguia absorve-lo apenas um pouco de cada vez. Ele continha todos estes fragmentos fantásticos e descrições que cresciam dentro da minha imaginação. Por exemplo, "Helena de T" foi um nome que eu já tinha escolhido para uma personagem em um conto meu inacabado, mas no livro de Calasso, tem um capítulo inteiro sobre Helena de Troia em que ele descreve como ela é quando menina, a primeira vez que é sequestrada, quando perde sua virgindade e seu casamento na vida após a morte - todas estas coisas que eu nunca tinha lido ou ouvido falar antes.
 
Scope: Parece que o aspeto mitológico abriu sua narrativa, tanto conceitualmente quanto tematicamente.
 
Klahr: Abriu sim, e também, a conectou à uma tradição mais antiga. Não é exatamente história - é mais como ficções elementares que são úteis ou longevas. São versões concorrentes de histórias que contêm verdades parciais ou paradoxais - em certo sentido, tudo é verdade, então, os textos têm grande abertura e adaptabilidade. Embora eles tenham milhares de anos de idade, é possível aplicar certos aspectos em meados do Século XX ou no momento presente. Mas eu também estou fazendo mudanças, como em "Helena de T", que não se trata da Helena de Troia que era tão bonita a ponto de causar uma guerra. A personagem de história em quadrinhos que uso é atraente, mas não é uma beldade. A minha Helena de T é mais como a cidadezinha de Troy em Nova Iorque. Mais como uma garota de bar. Estou construindo linhas diferentes ao longo de 66, como no quarteto de filmes que comentamos antes, em que os personagens são recorrentes. Há também um quarteto que se equilibra com um motivo recorrente de protagonistas loiras: "Helena de T", "A filha de Erígone", "Impressão labial (Vênus)" e "Letes". Eles formam uma mitologia poética também, que é mais explicitamente narrativa e que envolve arrependimento amoroso, perda e morte.
 
Scope: Com certeza há um tom melancólico em 66.
 
Klahr: Sim, este sentimento é fundamental para a maior parte de meu trabalho. Há uma tristeza, uma sensação de perda. Mas também há uma sensação de soma do tempo e um olhar para um quadro maior; é um tipo de tristeza que contém sabedoria e aceitação. A melancolia é um tipo de devaneio profundo que contém a dor, a doçura e a eternidade. Eu gosto de estar neste estado. A melancolia é descrita com frequência como algo que contém apenas tristeza e perda, mas ela também contém uma grande quantidade de êxtase e por algum motivo isso é pouco comentado.
 
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